quinta-feira, 30 de julho de 2015

POEMAS DO VENTO

Por Joaquim A. Rocha




O CARROCINHA


Já lá vem o Carrocinha,
sabe-se lá de onde vem;
isso ninguém o adivinha:
- de Lisboa, Santarém?

Quiçá do mundo celeste,
Dos confins duma estrela;
Parece um extra terrestre,
Uma figura singela.

Traz consigo uma carroça,
faz de mula, pra puxar;
mas como é alvo de troça
verdadeira vai comprar.

Vende agulhas e dedais,
lençóis, toalhas, corpetes;
camisolas, aventais,
linhas, pentes e tapetes.

Arrenda uma casa velha,
mete na corte a burrica;
e porque lhe dá na telha
põe-lhe o nome Dona Mica!

Ainda o sol não nascera
já o pobre animal zurra;
e a vizinhança, severa,
quer dar nele forte surra.

Como não trouxe mulher,
conquista a “bela” Solanja;
que lhe trata do comer,
lhe dá banho e o arranja.

Entre jovem e velhote,
mas com energia renascida,
sem precisar de um mote
glosa a amante querida!

Nos dedos grossos anéis,
símbolo da sua riqueza;
em cada mão já tem seis,
exibe-os com afoiteza!

Para ganhar mais dinheiro
vai para a Praça engraxar;
mas que bom engraxadeiro,
deixa o calçado a brilhar!

Na sua faina… cantava
a tal canção maluquinha.
(E alta gargalhada dava):
«lá vai, lá vai, a carrocinha

Tinha vários dentes d’ouro,
que os mostrava, ao sorrir;
era, também, seu tesouro,
outra forma de investir!

E assim viveu este ser,
rindo a vida por dentro;
gozando, com seu mester,
degustando sol e vento.

Tal como o alho e a salsa,
a cebola e o cravinho,
rodopiava na valsa,
dentro dum copo de vinho.

Eu parti da minha terra,
não mais o vi chalaçar;
entre nós ficou a serra,
a cidade, o longo mar.

Um dia, quando voltei,
o homem tinha partido;
fora sozinho, pensei,
prò paraíso perdido!

Deixou aqui geração,
como a chuva deixa lama;
fora apenas ilusão,
um incidente com dama!

A sua vida, a fingir,
era no mundo passar,
toda a gente divertir,
com seu riso e cantar!

Não tinha mais ambições,
não queria dos outros nada;
só um caminho, sertões,
uma carroça, uma estrada!

«Lá vai, lá vai, a carrocinha»,
para onde foi eu não sei;
que estória da carochinha,
será que tudo inventei?! 


1994



terça-feira, 28 de julho de 2015

MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS

Por Augusto César Esteves



... (continuação - ver 30/6/2015)

     Dos bancos da escola veio relacionado com Freitas Machado e Alexandre Garcia, nascido em Oliveira do Hospital, no termo de Ceia, que uma vez havia de ser o Juiz de Fora de Melgaço, para em Melgaço ficar a dormir o sono eterno na igreja da Misericórdia, numa campa para sempre assinalada pelo letreiro seguinte:
  
     «Aqui jaz Alexandre Luiz Garcia, Juiz de Fora em Melgaço. Este sepulcro lhe mandou fazer seu colega António de Castro Sousa Menezes, Morgado de Galvão neste reino e de outros na Espanha, descendente dos Castros de Melgaço, alcaides-mores de Melgaço. / Seja-te a terra leve
  
          Efectivamente, o Dr. António de Castro, que em 1792 leu no Desembargo do Paço a sua lição e em 11/2/1795 foi despachado Juiz de Fora da vila da Praia, na ilha Terceira, arquipélago dos Açores, mas para onde só partiu em 12/11/1797, conhecia bem a sua ascendência. Ele tinha ouvido ler, era já criança espigada, no seu solar, em longos serões de inverno, os autos de justificação de nobreza requeridos em 1601 por um velho capitão-mor de Melgaço, escudeiro de linhagem, quase no fim da vida eleito provedor da Santa Casa, homem enérgico e atrevido, fundador de morgados, Lopo de Castro, o moço, seu quinto avô paterno.
          Depois, mais tarde, homem já feito e com muitas luzes de direito, lera ele mesmo na letra encadeada dos processos do século XVI o depoimento de «Estêvão de Amorim, sargento-mor nesta Vila de Melgaço, e nela morador, testemunha a quem ele, Juiz, deu juramento dos Santos Evangelhos que tomou sobre um livro deles e perguntado sobre os costumes disse nada, e de idade de cinquenta e quatro anos, pouco mais ou menos. Perguntado pelo conteúdo na petição do suplicante disse ele, testemunha, que era verdade que o suplicante é morador na sua Quinta e Morgado do Fecho, termo desta vila, o qual Lopo de Castro é capitão-mor desta vila e sabe que o dito Lopo de Castro é filho legítimo de legítimo matrimónio de Lopo de Castro, seu pai, e sabe que o pai do suplicante, Lopo de Castro, era filho de António de Castro, avô do suplicante, todos moradores que foram na Quinta do Fecho, onde ora vive o suplicante, e António de Castro, avô do suplicante, era filho de Lopo de Castro, o velho, e sempre ele, testemunha, ouviu dizer a seu pai, Álvaro Afonso de Amorim, que é falecido a vinte e cinco anos de idade de cem anos, que este Lopo de Castro, bisavô do suplicante, era irmão de Pêro de Castro, o velho, alcaide-mor que foi desta vila de Melgaço e da vila de Castro Laboreiro, e assim da descendência pelo dito Pêro de Castro sabe vir de antigos alcaides-mores desta vila, como foram Fernando de Castro, o velho, e Pêro de Castro, e Fernão de Castro...»

          E acabada a leitura deste depoimento, virava depressa algumas folhas do processo para ler o testemunho de D. Catarina Esteves, mulher do dito Estevão de Amorim: «...que indo desta terra Pêro de Castro, alcaide-mor desta vila, para África na jornada de El-Rei Dom Sebastião, deixou o carrego de capitão-mor e sargento-mor e alcaidarias-mores a Belchior de Castro, tio do suplicante Lopo de Castro, o qual serviu os ditos carregos até à hora de sua morte, até entregar esta vila a Sua Majestade, por mandado do duque nosso Senhor, por ser o dito Belchior de Castro seu parente, primos segundos, e do dito Pêro de Castro ficara um filho, Fernando de Castro, que hoje serve nos ditos carregos e alcaide-mor desta vila e de Castro Laboreiro e portais...»
  
          Ora este Lopo de Castro, capitão-mor e senhor da Quinta do Fecho, era o pai do fundador da Casa com Torre de Galvão, Dom António Lobato de Castro e Sousa. O Dr. António de Castro sabia isto, como sabia muitas outras coisas; porque, nos fins de 1793, quando ainda estava na capital a fazer a aprendizagem da vida dos tribunais, recebeu das mãos dum recoveiro um maço de papéis enviados de Melgaço. Essa papelada fazia a história da Casa de Galvão e era capeada por uma procuração de seu pai, passada em Melgaço em 2 de Setembro desse ano, dando-lhe os precisos poderes para pedir a Sua Majestade o despacho dos serviços do pai de seu pai, Joaquim António de Castro Sousa Teles e Menezes, do bisavô Diogo António Castro e Menezes, e dos trisavós, paterno e materno, António de Castro Lobato e Matias de Sousa e Castro. E com base nos documentos recebidos redigiu ele a petição para ser presente a Sua Majestade.
          De seu avô, Joaquim António, familiar do Santo Ofício, contou como ele assentara praça em Lisboa e como, muito antes de haver cadetes em Portugal, foi autorizado a instruir-se praticamente nos serviços dos postos inferiores das milícias e, assim, veio para Viana Foz do Lima como tenente da companhia de Ordenanças daquela vila e, sobretudo, como na Guerra dos Sete Anos, no reinado de D. José, quando mandava no país o senhor Marquês de Pombal, e o Conde de Ó Reilli sitiava Almeida, em 1762, num daqueles combates travados nas Beiras com as forças espanholas, ele ficou mortalmente ferido e veio a acabar os seus dias na notável vila da Covilhã, ficando a dormir o sono eterno no Convento de Santo António, longe dos seus e da sua terra.
          Do bisavô, Diogo António, familiar do Santo Ofício e Cavaleiro da Ordem de Cristo, disse ter assentado praça, como voluntário, em 1727, e logo no ano seguinte pelos irmãos da Misericórdia ter sido eleito provedor da Santa Casa, levando-o a costumeira da terra e o seu espírito religioso a pagar do bolso particular, nas festas da quaresma daquele ano, os sermões dos Passos e os da Semana Santa.
          Contou como fora levado a fazer a justificação da sua nobreza e como, afinal, em Agosto de 1740, lhe fora entregue a carta de brasão de armas: (continua)...

domingo, 26 de julho de 2015

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha


Interior da igreja de Lamas de Mouro


OLIVEIRA MARTINS E OS MINHOTOS


     Na sua História de Portugal (Guimarães Editores – 16.ª edição, páginas 44 e 45) Oliveira Martins pinta o retrato do homem minhoto com cores assaz cinzentas. Diz ele: «o transmontano, vivo, ágil, robusto, destaca-se para logo do minhoto, obtuso mas paciente e laborioso, tenaz, persistente e ingénuo.» Mais à frente afirma: «a humidade (70 a 100%) torna flácidos os temperamentos e entorpece a vivacidade intelectual, que nem um frio demasiado irrita, nem um calor excessivo faz fermentar, à maneira do que sucede nas zonas genesíacas dos trópicos. Temperado o clima (12 a 15 graus), sem excessivos afastamentos hibernais, a população satisfeita, feliz, e bem nutrida de vegetais e de ar húmido, oferece a imagem de um exército de laboriosas formigas sem coisa alguma do alado e brilhante de um enxame dourado de abelhas.»    
     Oliveira Martins nasceu em Lisboa em 1845. Viveu no Porto durante algum tempo e foi deputado por Viana do Castelo em 1886. Devia, por conseguinte, conhecer razoavelmente o Minho e os minhotos: por isso, não se admite que tenha tido tão má impressão do nosso povo. Ele sim, foi obtuso quando chegou a essa infeliz conclusão.
     Está mais do que provado que, em relação a nós, essa asserção é errada: então os minhotos emigrantes não alcançam ótimos lugares de chefia, não se tornam excelentes técnicos, grandes gestores, em países tecnologicamente avançados? Se fossem estúpidos, isso não seria possível. Oliveira Martins viveu pouco tempo e escreveu demasiado para os quarenta e nove anos de vida. Não teve tempo suficiente para aprofundar os seus conhecimentos das pessoas e das coisas. Tudo quis abarcar e o resultado está à vista: como historiador ficou muito aquém de Alexandre Herculano, e como escritor de ficção (que o poderia ter sido e dos melhores) falta-lhe o principal, a personagem convincente. As suas personagens estão eivadas de uma ganga histórica, que as penetra até à raíz. O leitor das suas obras não sabe se está a ler uma obra histórica ou um romance! Oliveira Martins falou com desprezo e desdém. E tão aligeiradamente o fez que até se esqueceu das contradições em que constantemente caía! Primeiro afirma que a humidade torna flácidos os temperamentos – logo, o minhoto seria molengão; mais abaixo acrescenta que o minhoto é feliz e trabalha como as formigas, isto é, todo o ano! Ora, um povo obtuso não pode ser feliz, porque a felicidade advém de uma consciência tranquila, lúcida, viva. Logo, o minhoto é feliz porque é inteligente. Por outro lado, está provado que uma alimentação rica em vegetais e um ambiente puro torna as pessoas bem-dispostas, alegres, saudáveis de corpo e de espírito. Oliveira Martins não tinha razão e ofendeu-nos levianamente. António José Saraiva e Óscar Lopes escreveram (ver História da Literatura – 9.ª edição, página 947) - «o pitoresco de Oliveira Martins é, todavia, quase sempre convencional e forçado, geralmente um pitoresco de segunda mão, tendo por fontes textos literários e não uma percepção pessoal da realidade.» Estes autores não são suspeitos, visto serem, sobretudo o primeiro, admiradores de Oliveira Martins.
     Não é minha intenção reduzir a cisco a obra de um homem que, apesar de a vida lhe ter sido adversa na infância, nunca deixou de lutar. Alcançou mesmo um lugar de destaque na sociedade do seu tempo, chegando a ministro da Fazenda no reinado de Carlos I. Algumas das suas obras ainda hoje se lêem com agrado – Oliveira Martins foi um artista da palavra escrita. Vamos, portanto, dar-lhe um certo desconto, considerando-o apenas um teórico imaturo, que não pôde comprovar as suas extravagantes teorias.
     José Leite de Vasconcelos, um dos maiores sábios portugueses de todos os tempos, conheceu muito bem o Minho e as suas gentes, e nunca delas disse algo de mal – bem pelo contrário. As opiniões sobre os minhotos, que abaixo transcrevo, foram extraídas da sua monumental obra «Etnografia Portuguesa». Agostinho Rebelo da Costa, na sua «Descrição da Cidade do Porto» (Porto, 1788, páginas XIX e XX) diz dos minhotos: «na guerra não há soldados que se mostrem mais impávidos e se arrojem mais intrépidos aos maiores perigos; na paz não há gente nem mais quieta, nem mais benigna… na religião são constantes, no trato agasalhadores, graves nos costumes: os que seguem as letras fazem nelas admiráveis progressos, de sorte que a Universidade de Coimbra os distingue sempre com louvor entre os alunos.» Alberto Sampaio (Estudos Históricos e Económicos, I, páginas 530-534, Porto, 1923), diz: «a sua inteligência não tem um desenvolvimento precoce, nem a faculdade de compreender no primeiro momento qualquer questão; a raça é morosa e pesada, mas tem no grau mais elevado a paciência e tenacidade do trabalho, a sensatez ou juízo prudencial; a feição, enfim, de dirigir lentamente o pensamento, característica fundamental do seu génio.» Teixeira de Queirós (Campos da Minha Terra, in Atlantida Lisboa, 1915, páginas 45-52) escreveu acerca do minhoto: «… sempre afectivo, pouco desconfiado, dando-se facilmente, mesmo com aqueles que não conhece
     Apesar destes juízos, uns favoráveis outros desfavoráveis, poder-se-á afirmar sem grandes receios de erro, que a gente do Minho é pouco diferente da outra gente, sobretudo da população do norte e centro de Portugal.
     P.S. – já tinha o artigo terminado quando, por mero acaso, dou de caras com a famosa secretária de Oliveira Martins. Trata-se de uma secretária enorme, em boa madeira e em ótimo estado. Nela está incrustada uma placa em metal, com os seguintes dizeres: «secretária de constante trabalho do escritor Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1894). Oferecida em 13/10/1978 à Sociedade de Língua Portuguesa por sua sobrinha-neta Senhora Dona Maria Beatriz Salema Barbosa Cobeira


Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 953, de 15/12/1991.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

LEMBRANÇAS AMARGAS

Por Joaquim A. Rocha




... (continuação - ver em 26/6/2015)

- Malditos homens! Cambada! Não me largavam a saia, sabiam que estava indefesa, ninguém me respeitava. Esse era um patifório, pior ainda do que o teu pai, ameaçava-me de morte, batia-me como se eu fora uma cadela! Fez-me uma filha, que graças a deus morreu, e depois casou com outra, mesmo depois de casado ainda quis andar comigo, fugi-lhe sempre, mas só quando comecei a namorar com o teu pai é que ele me deixou de vez – teve medo!
- E os seus pais, não a aconselhavam?
- Cheios de penas andavam eles, a tua avó, antes de casar com o teu avô, mais novo sete anos do que ela, já tinha tido três filhos, coitada, padeceu muito, dois morreram-lhe com meses, com aquela maldita doença das crianças, o garrotilho, ou o sarampo, já não sei, poucas escapavam; o terceiro, o meu irmão Roberto, ainda viveu dezoito anos, pobrezinho, foi um ferro em brasa que espetou nas partes, era ferreiro, foi um grande desgosto para nós todos, olha que o teu avô gostava dele como se fosse seu filho, respeitou-o sempre, tratava-o como nos tratava a nós, meteu-o no padrinho e tio a aprender a arte, nunca se pensou que o levasse à sepultura. Também era músico da banda da terra. Teve um grande funeral, os colegas dele não puderam conter as lágrimas! Do teu avô nasceram… nem eu sei quantos, mas a maioria morreu criança, que naquele tempo havia muitas doenças, epidemias, as febres, que levava muita alma para o purgatório e para o céu. Deus sabe o que faz; se Ele os chama para a sua beira, é porque acha que é bom para eles.             
  
II

As virtudes vegetam no sofrimento


     Venham comigo. Agora sou proprietário de uma modesta oficina de consertos em calçado, que apelidei pomposamente de “Sapataria Ideal”. O meu ex-patrão, o Hilário, emigrara para França em busca dos francos, e eu aproveitei o rés-do-chão de minha casa para instalar aí a lojita. Tudo está a correr às mil maravilhas, mas aproxima-se inexoravelmente o dia de ingressar na vida militar; sou, por temperamento, pacífico, não quero fazer a tropa, mas também não tenho dinheiro para pagar ao engajador. Aproximem-se:

- Ó mestre, as minhas botas já estão prontas?
- Mestre, sim! Um fraco aprendiz. Mestre é o senhor Tinoco, esse sim, sabe trabalhar com moldes, corta a pele e faz calçado novo; eu, não passo de um remendão, devia ter estado mais uns anitos a aprender, mas o senhor Hilário emigrou para o estrangeiro. Quando os velhos morrerem não haverá mais artistas, o calçado terá de ser comprado nas lojas. Perguntou-me pelas suas botas. Acabei há instantes de as aprontar, e muito trabalho elas me deram; só o cortar o pneu para as solas puxou-me bem pelo peito. Espere um bocadinho que lhe vou pôr mais uma camada de pomada e dar-lhe brilho. Você depois em casa ponha sebo nelas, assim não deixarão passar a humidade. Ficaram como novas, tem aqui botas para uma vida.     
- Olha que vão para França, vão trabalhar no duro. Lá os invernos não são para brincadeira, aqui queixámo-nos, mas olha que lá é bem pior, há dias em que a gente nem pode pegar ao trabalho, as mãos não se podem tirar das luvas, aquilo é que é cair neve, e o frio é de rachar, não se aguenta. Mas um homem lá ganha algum, aqui não dava nem para o caldo, é verdade que um homem se esforça, mas traz dinheiro ao fim de uns anos.
- Ó tio Anacleto, e o que me diz da França? É bonita?
- Ó meu rapaz, nós não dispomos de tempo para visitar nada, vamos de metrô para o trabalho, voltamos de metrô para a barraca, fazer o comer, lavar a roupinha, remendá-la, fazer as compras ali na loja ao lado, e nada mais; dormir poucas horas, às seis da manhã já imos a caminho, aquilo é uma vida cadela, não gozamos nada, é só trabalho. Depois, quando vimos de férias, metemo-nos a construir a vivenda, isso é importante, nunca tivemos nada de nossa pertença, era tudo do patrão, agora começamos a ter qualquer coisa nossa.
- Ó tio Anacleto, acha que eu, com dezoito anos feitos, deva ir para França?
- Não to aconselho meu rapaz, és muito fraquinho, nunca trabalhaste nos campos nem nas obras, sempre metido na oficina, não estás curtido pelo sol nem pelo vento, tens pele de homem da cidade, não tens as mãos calejadas como nós, as nossas parecem de aço, não sei se te aguentarias; mas experimenta, se não te deres bem vens-te embora. Mas agora só se fores a salto, por causa da tropa. Qualquer dia vais à inspeção militar e não te livras, que eles agora precisam de soldados para a guerra nas colónias, e aquilo está bravo, caramba! Olha que não sei se fazes bem fugir-lhe, até pode ser que arranjes trabalho numa fábrica, sempre é mais leve, e estás recolhido, embora ganhes menos do que nas obras.
- O pior é o diabo do dinheiro, este mester só dá para o caldinho, não se junta nem um tostão. Se calhar vou pedi-lo emprestado a um parente, pode ser que o arranje, depois se pagará, até com juros, o pior é se sou preso na Espanha; perco o dinheiro e ainda por cima vou preso.        
- «Quem não arrisca, não petisca.»  // (continua)...


quarta-feira, 22 de julho de 2015

OS NOVOS LUSÍADAS

Por Joaquim A. Rocha 




11

Que achais que o mundo de nós espera?
Apenas o que nós esperamos do mundo:
Em paz, e em progresso, sem fome fera
Ir caminhando – longo passo fundo;
Criando a Fase de Ouro, a nossa Era,
Deixando pra trás tudo que é imundo;
Negando a fabulosa identidade,
Pois o tempo já é, e também a idade. 

12

E eu, sem oráculo ou profeta ser,
Prevejo que o dia luso vai chegar;
As trevas vão na luz esmorecer,
As ciências da vida despontar;
Vampiros na noite vão perecer,
Os déspotas atirar-se-ão ao mar.
As iras e paixões serão banidas
Para que os homens tenham outras vidas.

(continua)...

segunda-feira, 20 de julho de 2015

GENTES DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha



Crimes


FERNANDES, António. Filho de Maria Ludovina Fernandes, moradora em Casal Maninho, Penso. Neto materno de José Fernandes e de Rosa Maria Domingues, do dito lugar. Nasceu a 8/1/1863 e foi batizado a 10 desse mês e ano. Padrinhos: Manuel António da Lama, casado, rural, de Felgueiras, e Rosa Teresa Barbeitos, solteira, de Paradela. // Foi para Lisboa, ainda novo, onde conheceu uma moça, com quem viveu maritalmente. Tiveram dois filhos. // Teria perto de trinta anos de idade quando deixou o trabalho de cabouqueiro nas obras e entrou para uma quadrilha de ladrões, constituída por Santiago Rey y Lopez, António da Fonseca Pinto, Alfredo Gomes, João Esteves e Romão Louzada. Eram desordeiros e jogadores, frequentadores assíduos das tascas imundas, cheias de gente miserável e mesquinha. // Um dia, numa dessas tascas, o João Esteves diz aos outros: - «Como sabem, sou do concelho de Monção. Ontem escreveram-me dali, participando que minha tia, governante em casa do reitor da freguesia de Troviscoso, recebeu um conto de réis duma herança. Não acham que seria um “golpe real” apanharmos aquele dinheiro? Além disso, o reitor também possui pé-de-meia. De uma cajadada matam-se dois coelhos. Que dizem?» Alguns argumentaram com o preço da viagem, com a distância, o desconhecimento do sítio, enfim, não estavam dispostos a encetar aquela aventura tendo ali à mão de semear algumas casas bem recheadas. Apesar de tudo, o João Esteves lá os convenceu. Empenhavam alguns bens no prego e com esse dinheiro meter-se-iam a caminho. A 25/6/1892, em casa de Alfredo, encontraram-se de novo. Foi nessa altura que Romão apresentou aos companheiros Santiago Rey y Lopez, a fim de fazer parte da quadrilha. Decidiram então que o chefe nesse assalto seria Romão. Partiram para o Minho a 28 de Junho. Como só havia comboio até Valença tiveram que ir a pé a partir dessa vila alto-minhota. Chegados a Troviscoso, refugiaram-se na mata que havia ali perto. Entretanto um deles foi comprar alimentos a uma mercearia de aldeia. Os bandidos dirigiram-se de noite a casa do tal reitor. Os criados do sacerdote regavam as geiras da terra, por isso os seis gatunos tiveram de regressar ao esconderijo; teriam que aguardar algum tempo, até que os serviçais fossem dormir. Por volta da meia-noite decidiram avançar. Tiveram pouca sorte. Um dos criados ainda não se fora deitar. Ao ver os bandidos correu à procura da espingarda que a seguir disparou. Os salteadores fugiram a sete pés para o bosque. O João então disse: «É melhor abandonar o primeiro plano e deixar em paz minha tia; aqui perto mora um lavrador, o “Rendeiro”, que avesa bons cabedais; vive com duas filhas, lindas como os amores. Vamos até lá?» Chegaram a casa do agricultor de madrugada. Na horta andavam dois jornaleiros com sacholas nas mãos. Ficaram desapontados. Iam ali para roubar, não para matar. É nessa ocasião que António Fernandes, por alcunha o “Guerra” (*), lembra aos companheiros que sua mãe trabalhara em Vilar, Alvaredo, em casa do padre Manuel António de Sousa Lobato, o qual residia com seu irmão e sua irmã, esta casada. «O reverendo tem bons capitais, e não seria mau limpar-lhos», diz ele. Os outros acharam a ideia excelente, pois estavam a ver que voltavam para Lisboa de mãos a abanar. O Guerra e o Santiago foram comprar alimentos à loja de António Luís Pereira, dos Moinhos, Paderne. No regresso, e depois de comerem, o Guerra traçou a lápis num papel a configuração da casa do presbítero, pois conhecera-a muito bem. Até sabia onde os seus moradores dormiam. Os bandidos permaneceram na mata até às duas da madrugada de 2 de Julho. A partir dessa hora foram-se aproximando da casa do padre Lobato. Iam todos armados, com exceção do Alfredo, que dera ao Guerra a sua pistola. «Fonseca levava um punhal, Romão uma navalha de ponta e mola, Santiago um revólver e um cacete, e João outra pistola pertencente ao Guerra.» A entrada na vivenda seria fácil, pois numa estrumeira encontraram uma escada, a qual encostaram a uma janela. Como os moradores conheciam o Guerra, ficou decidido que ele não entrava – ficaria a vigiar. Santiago foi o primeiro a penetrar na habitação e fez um barulho dos diabos. Quando os cinco já se encontravam no interior, Romão acendeu a vela que fora adquirida na dita loja. Viram então, a um canto da sala, quatro espingardas carregadas. Deitaram-nas pela janela fora. Entraram no quarto do padre à procura de dinheiro. Este acordou. Soltou um grito, ao ver os larápios, e tentou defender-se. Romão apagou a luz, mas entretanto já o sacerdote se agarrara a Santiago. Os outros puxaram das navalhas e esfaquearam o padre, que caiu no chão inanimado. O seu irmão e cunhado apareceram e travou-se luta renhida; porém os bandidos levaram a melhor, mas os gritos dos feridos despertaram a vizinhança, pelo que os malandros tiveram que fugir sem levar nada. O Guerra, vendo aproximar-se pessoas, deu à sola, a fim de não ser apanhado. Os outros só mais tarde o encontraram. Chegados perto de Monção, um deles, o João, separou-se dos colegas, dizendo-lhes que ia para Cristelo, freguesia de Bela, para a casa da sua antiga ama, a fim de ser tratado, pois tinha um ferimento no pescoço. Os outros dirigiram-se para o Extremo, perto dos Arcos. Pelo caminho compraram pão e chouriço, pois já não se alimentavam há várias horas. Dali seguiram para Braga. Guerra e Fonseca continuaram a caminhada até ao Porto. Tudo feito a pé! Romão e Alfredo foram no dia seguinte de comboio. Santiago ficou em Braga durante dois dias a fim de vender o revólver, o que conseguiu por 1$000 réis. Da capital do Minho seguiu a pé para o Porto, e dali partiu para Lisboa, chegando a pedir esmola pelo caminho. Alfredo, Fonseca e “Guerra” empregaram-se nas obras da estrada da Circumvalação, no lugar de Pereiró, freguesia de Ramalde. Pelos jornais iam sabendo notícias; a polícia nada descobrira acerca deles, mas já prendera uns quantos suspeitos. O “Guerra”, já farto do Porto, resolveu meter-se a caminho da capital do país. A namorada e os filhos aguardavam-no. Ao chegar a Sacavém acabou-se-lhe o dinheiro. Teve que pedir esmola. Foi comendo o que lhe ofereciam e lá chegou finalmente a Lisboa. Levara sete dias e meio na viagem. Lá chegado, arranjou trabalho numa pedreira, nos Prazeres.
     O padre Lobato faleceu vinte e um dias depois do crime, ou seja, a 23/7/1892. Dias antes recebeu-se na casa de Vilar uma carta anónima, informando que os assassinos residiam em Lisboa. O cunhado do eclesiástico foi entregar essa carta ao delegado da comarca. Uma cópia da mesma foi enviada ao Dr. José Manuel da Veiga, comissário da 3.ª Divisão, em Lisboa. Descobriu-se que o seu autor fora o calceteiro da Câmara, José Manuel Rodrigues. Escreveu a missiva, segundo ele, porque não queria que os suspeitos pagassem pelos verdadeiros criminosos. Indicou os operários que se ausentaram sem qualquer explicação e graças a isso os bandidos foram descobertos. O melgacense foi capturado na dita pedreira a 2/8/1892. O “Guerra” «que era, na verdade, o melhor dos bandidos», perante o interrogatório baixou a cabeça e disse: - «Pois bem! Já vejo que estou perdido. Vou contar como se passou essa brincadeira.» O Alfredo confirmou mais tarde a confissão do companheiro. O Fonseca não quis admitir a sua participação no crime, mas o António Fernandes convenceu-o a confessar com estas palavras: - «Ó homem! Fomos seis a comprar a melancia, temos todos seis que comê-la. É melhor falar a verdade e não estar para aí a maçar mais.» Na noite de 9 de Agosto os quatro criminosos (faltava ainda capturar Romão Louzada e João Esteves) foram encaminhados para Melgaço, a fim de serem julgados. Seguiram de comboio até Valença, algemados, numa carruagem de 3.ª classe, e escoltados por vários polícias. O “Guerra”, antes de se meter no comboio, pediu para falar ao Dr. Veiga: «Sr. Comissário, só uma coisa lhe suplico – é que tome conta e proteja a minha filhinha que tem apenas cinco anos.» O Comissário prometeu-lhe que iria tratar disso. // Nessa altura publicava-se em Melgaço o jornal «Espada do Norte», que sucedera ao «Melgacense», dirigido por António Avelino Douteiro. // Da cadeia de Melgaço, pouco segura, foram transferidos para o Porto. Entretanto João Esteves também foi preso e seguiu para junto dos outros. Apenas o Romão se safou. // O julgamento, feito no Tribunal de Melgaço, verificou-se a 3/8/1893. // António Fernandes, o “Guerra”, foi condenado em oito anos de prisão maior celular, seguido de doze de degredo, ou na alternativa de vinte anos de degredo. Os outros quatro apanharam oito anos de prisão maior celular, seguida de vinte anos de degredo, ou na alternativa de vinte e oito anos de degredo. A 7/11/1893 confirmou-se a sentença, e a 24/1/1894 os cinco criminosos recolheram à Penitenciária. // Em 1897 António Fernandes ainda se encontrava na Penitenciária de Lisboa. Nada mais sei dele.
     /// (*) No «Correio de Melgaço» n.º 236, de 11/2/1917, fala-se no António Fernandes, chamando-lhe «celerado “Bera”», em lugar de “Guerra”.        

sábado, 18 de julho de 2015

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha





Cartas de um castrejo
... (continuação)

7.ª - «Sr. Redactortrocadas as nossas impressões no pretérito dia 9, a fim de que a indulgência do “Correio” continue a ser, para nós, uma garantia segura de que as nossas necessidades serão do conhecimento público, retiramos com a nostalgia do lar – do nosso lar, onde o fogo crepita e o escabelo espreita a nossa chegada, rodeado de mesinhas, ocupadas pelos garotos, que esperam as coisas da feira. Chegamos, enfim, mas que de peripécias no caminho! Descrevê-las todas, no curto âmbito de uma carta, seria impossível: mas vamos àquelas que mais nos impressionaram: encapotados, com a nossa calça de cabedal e a chuva inclemente a fustigar-nos o rosto e a cegar-nos a montada, largamos do Vila Verde às 16 horas. Calçada arriba, alto a Cabana, Costa da Rolha, Fiães e Breia (aqui já a neve começa a dificultar-nos a viagem), Alcobaça, Costa de Portelinha e, atingida, cá estamos em plena "Rússia". A derrota facilita-nos a chegada à vila, mas que desolação! Na orla dos caminhos divisam-se-nos vultos negros a destacarem-se da alvura da neve: são reses que a fome e o frio abateram. Um ou outro candieiro de petróleo, cujas résteas de luz se coam pelas frinchas das janelas e portas, indicam-nos que estamos na vila castreja. Não tomamos nada. Vamos para o nosso querido e almejado lar. Ali, depois de fazermos a muda do fato e o arranjo da montada, ocupamos o nosso lugar à lareira, onde a esposa carinhosa e os filhos estremecidos nos acalmaram das fadigas da viagem. E, depois dum caldo reparador e quentinho, filosofamos: que triste a nossa vida! A neve põe uma insuperável barreira ao nosso convívio: não temos caminhos transitáveis; as messes nada produzirão, por vergastadas com estas furiosas intempéries, os batatais morrem; e os javalis, em quantidade, assaltam-nos as covas, onde ainda guardamos a colheita anterior. Decididamente, somos um povo enteado desta querida pátria, que tanto amamos e por quem trabalhamos! Ninguém se lembra (…) que a vida que levamos é um martírio, lutando com a fereza dos elementos e com a ingratidão e olvido dos homens. Para a cama, pois, onde a manta já nos reclama, com a esperança de que sonhos fagueiros nos retemperem a alma. Acordamos que só sonhamos coisas tristes… Castro Laboreiro, 16/3/1916.» // (continua)...        

     Nota: ainda demoraria muitos anos, mais de trinta, a construção da estrada para Castro Laboreiro; até 1950, mais ou menos, era uma freguesia esquecida, com cerca de duas mil criaturas a sofrer o rigor do inverno e o sol escaldante de verão. Por estas e outras razões é que em 2015, segundo dizem, só ali moram cerca de quinhentas pessoas, apesar de agora terem boas casas e acessos em ótimas condições. A serra é boa para a caça, para o turismo; para residir, o ser humano prefere a vila ou a cidade, mesmo com a maldita poluição.   





quinta-feira, 16 de julho de 2015

ENTRE MORTOS E FERIDOS 
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)

romance

Por Joaquim A. Rocha



... (continuação)

- Chegamos finalmente a Melgaço. Nos anos sessenta do século XX era uma Vila minúscula, sem alma, triste e semi-desértica! Os jovens tinham emigrado. As raparigas, em grupo, aos domingos à tarde, pareciam andorinhas na primavera procurando o seu companheiro para, juntos, construírem o seu ninho. As fadas do lar, atingidas no âmago do seu peito, choravam amargamente. Umas… porque tinham os seus rebentos por essa Europa fora; as outras, em menor número, porque eles combatiam em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. As mães estão sempre em pranto quando os seus meninos estão ausentes.
- Eu nunca passei por essa experiência – lembra Henrique. - Estive sempre com a minha mãe. Quem sabe, um dia…
- Não tenhas pressa, rapaz; é bom viver com os nossos pais, com aqueles que o são, porque há criaturas que não merecem esse nome. Mas é melhor não abordar esse assunto, pois quando falo disso fico sempre triste.
- Continue com a sua narrativa – propôs Henrique, amavelmente, verificando que o seu amigo estava deveras emocionado.
- Durante o período que estive na terra natal trabalhei arduamente, a fim de juntar uns tostões. Os preços praticados eram baixos, não dava para amealhar; os meus clientes eram pobres, quase todos pequenos agricultores, mesmo assim ainda consegui umas centenas de escudos. O implacável calendário ia-me informando de que o dia de regressar ao CICA-1, assim se designava o quartel, se aproximava vertiginosamente. Andava taciturno e pensativo. Que raio, por que não podia fugir, ir para França ou Alemanha, como os outros foram?! Que força, maldito fado, me obrigava a caminhar em direcções opostas à minha vontade, ao meu sentir, à minha maneira de ser, à minha ingénita passividade? Estaria a ser posto à prova por entidades superiores, divinas?! – pensava eu, temeroso, mergulhado ainda na fase do obscurantismo religioso!  Não lera, só alguns anos mais tarde isso aconteceu, Bertrand Russell (Porque Não Sou Cristão), nem o surpreendente romance “Jean Barois”, de Roger Martin du Gard, editado pelas Éditions Gallimard em 1914.
- Nem Marx, Engels, Lenine, Estaline, Mão Tsé-Tung…
- Antes de 25 de Abril de 1974 não se podiam ler essas obras em Portugal. A igreja católica portuguesa, sobretudo a sua hierarquia, e a PIDE, estavam atentos, as livrarias não podiam colocar à venda esses livros, sob pena de ficarem sem eles e arranjarem problemas graves com a “justiça”. A censura era implacável, meu amigo. Se alguém estivesse sob suspeita, a sua vida tornava-se num inferno, corria perigo. A sua casa podia ser invadida a qualquer momento, submetê-lo-iam à tortura do sono, podia, inclusive, ir parar ao aljube, ao Tarrafal, essa maldita colónia penal de Cabo Verde...
- Mas não eram apenas os militantes do Partido Comunista os alvos da PIDE? – perguntou Henrique, cheio de dúvidas.
- Qualquer um podia sê-lo, desde que mantivesse um comportamento social que suscitasse suspeitas aos esbirros de Salazar. Para eles, nós, os que estávamos contra o regime, éramos todos comunistas!
     Mas, dizia eu, que essas leituras me ajudaram a compreender o mundo. Eu estava de olhos fechados, completamente! O padre Emiliano, o «santinho», como as beatas lhe chamavam, mais as catequistas, obstruíram o meu cérebro de criança. Tudo era pecado: desobedecer, recusar, pensar! Ter imaginação era considerado heresia! Até brincadeiras inocentes eram, por vezes, vistas com maus olhos. A repressão era o pão-nosso de cada dia. Tínhamos que rezar o credo, a salve-rainha, eu sei lá, como castigo! E a cana-da-índia funcionava sempre: na escola e na catequese. Há pecados mortais e não mortais. Um deles, que alguns padres jamais cumpriram, é aquele que diz: «Não cobiçarás a mulher do próximo»! Quanto a mim os padres católicos deviam casar, para saberem o que é amar um filho, e o que custa educá-los com dignidade.
- Esses grandes sábios ajudaram-no a libertar-se desse jugo irracional, dessa escravatura do espírito…
- Em parte sim; o resto é a experiência, o rolar dos anos, o contacto com os outros, os altos e baixos da vida, a infinita curiosidade. Muitas pessoas não querem sair do fosso – ficam lá, chafurdando! É cómodo.                

2.º Capítulo

CICA – 1
  
     Os dias agora eram compridos, o sol brilhava, banhando de luz a cidade, mas não havia aquele calor excessivo do verão. Tudo convidava ao passeio, mas os dois amigos preferiam conversar, sentados na esplanada, beber umas cervejinhas em garrafa, e os populares “finos” ou “imperiais”, acompanhadas de tremoços ou amendoim. Cândido, sabendo do interesse do outro, iniciou a conversa:
     - Finalmente a hora da partida chegou. Muito triste, choroso, amargurado, quase doente, apanhei a camioneta no Largo da Calçada, ou Largo José Cândido Gomes de Abreu, em homenagem ao fundador do Hospital da Misericórdia, conhecida por carreira, e depois o comboio em Monção, em segunda classe, para a grande cidade do norte. O primeiro dia destinou-se a receber a fardeta cinzenta, cujo capote pesava quilos – só em Abril ou Maio desse ano de 1965 é que nos entregaram as novas fardas, de cor verde – e as instruções acerca do funcionamento do quartel.
     Tínhamos que conhecer os cantos à casa, apreender as regras para as cumprir escrupulosamente. As fardas, por mais estranho e absurdo que isso pareça, não as davam à medida do nosso corpo – botas com o número 44 entregavam-nas, por vezes, a rapazes que calçavam o número 39! Essa forma de distribuir os fardamentos mostrava-se, à primeira vista, caótica, sem sentido, e quanto a mim, era, mas depois, já na caserna, tudo se resolvia através da troca. Não seria isto também um teste à nossa inteligência? Ao lançarem esta confusão, os militares de carreira iam verificando como os jovens recrutas encontravam a saída do labirinto.
- Engenhoso! Genial! – reconheceu Henrique, até ali calado.
         Cândido, ao ouvir a voz do seu amigo, quase deu um salto! Imaginara-se sozinho, a discorrer sobre o seu passado, matando-o se possível, esquecendo-o, pelo menos. Não estava só, e ainda bem. Aquela amizade livrava-o do isolamento, libertava-o de pesadelos horríveis. Logo a seguir continuou:
 - Uma gritaria imensa atroava os ares; entregues a nós próprios, extenuados e numa babel sem rumo, sentávamo-nos sobre as caixas de madeira de pinho que no futuro nos iriam servir de roupeiro e despensa. Essas caixas tornaram-se mais tarde motivo para muita rixa, pois os filhos de camponeses e agricultores levavam nacos de presunto e chouriços da sua casa, da sua adega, e metiam-nos ali; como cheirava, os improvisados ladrões rebentavam as frágeis arrecadações, as que não tinham aloquete, e comiam regaladamente essas iguarias. Quando descobriam o guloso gatuno, havia porrada pela certa. Tinha que vir o cabo, ou o sargento de dia, apartá-los, de contrário o sangue jorrava.
- O Cândido chegou a andar à tareia com algum colega?!
- Não vais acreditar! Um dia, ou melhor, uma noite, quando me ia deitar não tinha roupa na cama! Que fazer? Comprá-la não podia! Onde havia dinheiro para isso? Por outro lado, não podia sair do quartel a essa hora. Fiz o que outros fariam nessa situação: procurei uma cama onde não estivesse ninguém e levei a roupa para a minha. No dia seguinte aparece um soldado e atira-se a mim! Andamos aos socos, eu até parecia o Belarmino, e depois veio o cabo e separou-nos. Depois de tudo esclarecido, fizemos as pazes.
- E a roupa? – interroga Henrique.
- Já não me lembro, mas penso que o oficial dia resolveu isso. Os que furtavam as coisas – sobretudo fardas e calçado – era para depois as vender. Não sei como conseguiam passá-las para a rua, é um autêntico enigma, pois a vigilância era apertada!
        Eu tinha imensas saudades da minha terra, da minha gente, dos meus hábitos quotidianos, da minha equipa de futebol, da minha saborosa comida, do jogo da sueca e dos matraquilhos. A Vila de Melgaço estava algures, longe, muito longe. Eu sonhava. Primeiro começava a vê-la vagamente, mergulhada em densas nuvens, de variadíssimas cores; depois, pouco a pouco, elas adensavam-se de tal modo, que me ofuscavam totalmente a visão. Possuía asas e voava, sobre os mares e montanhas, mas regressava sempre àquele sítio onde eu nascera; mas quando me aproximava a minha vilazinha fugia, desaparecia como levada pelo vento em fúria! Eu gritava desesperado: «Não, não roubem o meu adorado Melgaço, eu preciso de ver o seu rosto, de respirar o seu ar, de o abraçar afectuosamente
      
     Acordava sobressaltado. Estava ali, naquele casarão de cimento, com rapazes que se pareciam vagamente comigo, mas que não falavam a mesma linguagem, embora utilizassem o mesmo idioma. Quem seriam? Tinham outros costumes, vozes roucas, palavras rudes; ao falarem, denunciavam a sua origem; palavrões obscenos faziam já parte do seu parco vocabulário; a agressividade era inerente ao seu temperamento. Olhava para as suas enormes mãos e pareciam-me garras de ave de rapina, prontas a sonegarem a qualquer momento, se me distraísse, os meus escassos bens. Tive medo, confesso, mas não gritei. Esperar; a solução para o meu infundado terror seria esperar. «O tempo será o meu grande aliado», comentei em surdina.         
      A corneta tocou a alvorada. Seis da manhã. Levanto-me a correr, no meio de uma algazarra ensurdecedora. Da camarata íamos para as casas de banho cortar a barba, no meu caso uns pêlos que no meu rosto tinham aparecido clandestinamente, sem aviso prévio, e tomar um refrescante banho. Antes fôramos buscar as toalhas, brancas umas, outras amareladas, de tanto terem sido lavadas, de um pano grosseiro, a imitar o linho. Todos nus. A vergonha, o pudor, iriam desaparecendo, pouco a pouco. Depois do banho fardei-me e dirijo-me ao espelho. Afinal, o meu esqueleto franzino e o meu pé miúdo, ainda não tinham crescido para a vida de guerreiro!

- Você tinha vinte anos, era um homem – comenta Henrique, quase esquecido, enterrado na cadeira, bebericando cerveja e comendo uns tremoços.
- É verdade, fizera vinte anos havia sete meses, mas o meu corpo era pequeno e magro, pouco mais pesava do que cinquenta quilos!
- Depois engordou com o rancho – riu-se Henrique.
- Nem sequer fazes ideia do que era aquela porcaria. Ao pequeno-almoço davam-nos um pão grande, chamado casqueiro, para todo o dia, um púcaro de café com leite e um bocadinho de margarina ou marmelada, feita, salvo erro, de maçã! Ao almoço e jantar um caldo de couves, aguado, sem azeite, com uns bocados de carne, ou gordura de porco, de terceira categoria, sem lavar, quantas vezes fora do prazo, provocando um cheiro nauseabundo, e o presigo, carne ou peixe, acompanhado de batatas, arroz ou massa. Tudo mal confeccionado e sem higiene. Muitas vezes na sopa apareciam pedaços de piaçaba, que caíam da vassoura quando os faxinas – ou ajudantes do cozinheiro – esfregavam as panelas. Não esquecerei jamais a primeira refeição: arroz de polvo. Intragável! A cem metros de distância já se obtinha a indescritível sensação de estarmos perto de uma fossa a céu aberto. Não comer, seria o nosso fim; comer, era um sacrifício. De qualquer modo, não existia alternativa. Comparecer às refeições e comer, ou fingir que se comia, era obrigatório – fazia parte do regulamento. O homem, o ser humano, senhor do mundo mas não senhor dele próprio, tem de se adaptar ao meio que o rodeia. Teríamos que nos habituar, e quanto mais depressa melhor.    
- Você é fidalgo! – ironizou Henrique, desejando desdramatizar.
- Nem por isso. A minha mãe era cozinheira profissional, num hotel das Termas do Peso, e por isso eu estava habituado a comer comidinha bem feita. Mas também te digo: por incrível que isso pareça, alguns jovens das zonas rurais, campónios, maltratados pela vida dura do campo, não estranharam. Pelo contrário: muitos deles até engordaram como texugos! Comiam que nem labregos. Tudo que viesse à rede era peixe. Lembro-me de um que aumentou o seu peso em vinte quilos bem medidos, no período de quatro meses. Parecia um cevado!
     Depois de um dia fatigante, exercício físico, manejo de armas, condução de pesados, reunimos na parada. Eram seis horas da tarde e o corneteiro estava pronto a tocar para a janta. Momentos antes mirei novamente a minha ridícula figura no espelho. Sorri, sem querer. Que diriam os meus conterrâneos se vissem este pequenino corpo enfiado naquele desmedido uniforme? Troçariam de mim, de certeza absoluta! A corneta tocou. Era o relógio de ponto, o ditador implacável, o hitler mecânico. A partir desse dia andaríamos sempre ao toque dela: para levantar, para as refeições, para os exercícios, para recolher, para tudo!
     Destroçar e refeitório. Desatei a correr atrás dos outros. À nossa espera estavam os “velhos”; queriam rir à nossa custa. E riram! Tinham sido, no passado recente, também eles, alvo de chacota, de gargalhadas mil. Vingavam-se.
           
     Henrique não fizera a tropa, porque quando tinha vinte anos a guerra colonial já terminara. Não precisaram dele. Por um lado lamentava tal facto, pois dizia-se que quem não fosse militar não era homem, mas por outro lado agradeceu, visto ter-lhe permitido estudar sem sobressaltos. Perguntou:

- E os sargentos e oficiais, não comiam com vocês?
- É óbvio que não, meu amigo; eles possuíam refeitórios separados, a que chamavam messes, e aí, a comida, segundo constava, era óptima. Servidos com delicadeza, com abundância… Até vinho bom bebiam – nós bebíamos a zurrapa, vinho batizado e mesmo assim, pouco. Ao contrário da maioria dos soldados, a sua pele era luzidia, bem tratada, o que só se consegue através de uma saudável alimentação. Eu lembro-me de algumas crianças da minha parvónia, raquíticas, com pele de velhos, porque andavam mal alimentadas.
     Permaneci no Centro de Instrução de Condução Auto (CICA-1) dois meses. Sessenta dias de intensos e temerários exercícios: capacete metálico na cabeça, armas às costas… Sabes que muitos rapazes apanharam uma doença qualquer no couro cabeludo por causa dos capacetes?!
- Não me diga? – exclamou Henrique, admirado.
- É verdade! Não punham nada entre o capacete e o cabelo e assim os micróbios que havia na armadura passavam para a raiz do cabelo, sobretudo quando se suava, o que acontecia diariamente. Alguns ficaram sem um único cabelinho!       
- E você, não apanhou o vírus?
- Não, porque eu colocava um lenço enorme na cabeça; tinha nojo, asco, do capacete – já tinham servido, segundo constava, na Primeira Grande Guerra, em 1917 e 1918, quando os portugueses lutaram em França contra os alemães. 
- Caramba! Eram antigos, os bichos!
- Todos os cuidados são poucos para preservarmos a saúde. Mas o que mais me custou naqueles longos dois meses foram os vexames, aquelas ordens que soavam como vergastadas no meu frágil corpo – doíam por dentro: «Não pára. A correr, a correr.» «Quem cair leva um pontapé no traseiro.» «Salta o galho, seu nabo!» «Não sou capaz, meu aspirante.» «Filho da mãe, levas cinquenta flexões de castigo.» E as humilhações eram contínuas: «Ó recruta!» «Sim, meu sargento.» «Sabes andar de bicicleta?» «Sei, meu sargento.» «Então vais varrer a parada!» A vassoura era enorme! Os prontos passavam e riam-se, aquele riso sarcástico, que penetra fundo na alma da gente.
     Quando queria sair à rua, o que raras vezes era permitido, tinha que pedir no portão de saída ao oficial de dia, normalmente um aspirante ou alferes. «Posso sair, meu alferes?» «Ora deixa-me ver. As botas não estão mal engraxadas, não senhor, mas esses amarelos… deixam muito a desejar.» «Meu alferes, estive quase meia hora a limpá-los, até brilham…» Ele irritava-se, ou fingia: «Eh, pá! Estás a gozar comigo? Vais limpá-los imediatamente.» «Sim, meu alferes.» Cabisbaixo, resignado, lá ia eu outra vez para a caserna, dar mais uma esfregadela nos metais da farda – parecia ouro a brilhar! O estômago podia estar vazio, mas o exterior, esse tinha que estar bem tratado!
- Isso revoltava – reagiu Henrique com espontaneidade.
- Nada de armar em esperto, meu amigo, isso ali não resultava. Executar as ordens, justas ou injustas, dadas por aqueles seres sentados num pedestal, mais poderosos do que os deuses do Olimpo, e calar. Tinham muito poder aqueles sacanas, até nos podiam matar à porrada! Houve casos em que isso ia acontecendo, depois argumentavam que o soldado era anarquista, não quisera obedecer às suas ordens, enfim, ficavam sempre na mó de cima. Os oficiais superiores, até ao general, davam-lhes sempre razão, mal do soldado – ia parar à cadeia ou à enfermaria. A seguir, logo que melhorasse, mandavam-no para a frente de batalha, para morrer!
- Era quase um assassínio!
- Mais ou menos. Camuflado, mas um crime, sim…
- Tempos difíceis, meu amigo, tempos difíceis.
- Podes crer. E como se não bastasse, ainda tive que apanhar uma vacina que me levou à cama com febre. Colocaram-nos em fila indiana, junto à enfermaria, e os enfermeiros – semelhantes a magarefes – iam espetando nos nossos braços a agulha; minutos depois outros iam injectando o malvado líquido. Alguns rapazes não reagiram bem à vacina e tombaram no chão desmaiados! Nesse dia assustei-me deveras. Pensei não resistir.
- Foi dose para cavalo! – aventou Henrique.
- Era precisamente isso que todos dizíamos. Quase que nem um elefante aguentava. Os mais antigos, talvez para nos gozar, ou quem sabe, com pena de nós, aconselhavam-nos a ir ao bar beber vinho. «O álcool atenua o efeito», diziam eles. Os enfermeiros, esses, pediam-nos que aguentássemos, pois dentro de uns meses iríamos para África, e estas vacinas evitariam as febres que grassavam com frequência naqueles climas quentes.         
        O quartel ficava paredes-meias com o Palácio de Cristal e perto do rio Douro. Talvez por isso me tenha deixado algumas réstias de saudades quando de lá parti. Podendo, ia até ao rio, ver os pescadores pescarem, lembrava-me sempre o meu rio Minho, as margens mais bonitas, mais verdes, aqui e ali surgindo uma fonte natural, água fresca, nunca mais encontrei em parte alguma dessa água maravilhosa. O rio Douro era maior, mas sujinho, coitado. As suas margens, no Porto, não são belas nem naturais. Construíram casas abarracadas, onde vivem centenas de pessoas miseráveis e com pouca, ou nenhuma instrução. No Minho era diferente: os arvoredos, os campos de milho e de centeio, as vinhas, dão à paisagem um tom alegre e colorido. De um lado os galegos e de outro os portugueses, umas vezes à pancada e outras vezes aos abraços!
     O poeta monçanense João Verde soube cantar em verso como ninguém essa proximidade/afastamento: «Vendo-os assim tão pertinho/a Galiza mail’o Minho,/são como dois namorados/que o rio traz separados/quase desde o nascimento…»
     Durante esses dois meses de permanência no CICA-1 fiquei a conhecer razoavelmente a capital do norte: as suas grandezas e misérias, as suas belezas (monumentos extraordinários) e fealdades (ruas estreitas e íngremes, quase sempre sujas e mal cheirosas, gente bêbada e pouco educada).
- Mais misérias do que grandezas, talvez? – pergunta Henrique, com redobrada curiosidade.
- Na cidade média e grande está tudo equilibrado. Mas estava eu a dizer… Ah! já me lembro. As montras das lojas eram a minha atracção favorita: atraíam-me, como os brinquedos atraem o bebé. Olhava, bronco, embasbacado, para os objectos nelas expostos – um autêntico papalvo! Aquelas luzes variegadas, os milhentos anúncios luminosos, fascinavam-se, arrastavam-me para outro mundo, para o sonho, para o devaneio…      

- Estava a nascer em si um poeta. 
                                                      (continua)...