domingo, 28 de fevereiro de 2016

LINA - Filha de Pã
romance

Por Joaquim A. Rocha


// continuação...

O diálogo prolongou-se por mais algum tempo, até que Clara ordena à filha:

- Vai preparar as tuas roupinhas que amanhã vamos as duas à Vila arranjar uns patrões para ti. Já me disseram que o Senhor Doutor Juiz precisa de uma criada, a rapariga que lá estava adoeceu e foi para a terra dela.
- Está bem, minha mãe, vou a correr.

      Deviam ser cinco da manhã quando Clara acorda a filha.

- Levanta-te, são horas de arrancar. Temos que estar lá antes das nove. Depois o Senhor Doutor Juiz vai para o Tribunal.
- É tão cedo, mãe, não posso estar mais um bocadinho na cama?
- Não é possível, levanta-te.         

     A rapariga deu um salto do leito, vestiu a roupa e dirigiu-se à cozinha a fim de comer uma malga de água-de-unto com broa. Era só ferver a água, colocar lá dentro um bocado de unto, e já estava. O estômago ficava aconchegado durante duas ou três horas.

- Lina, despacha-te, e não te esqueças de pôr os sapatos dentro da cesta, para chegarem a Melcarte limpinhos; nós, pelo caminho, vamos de tamancas.
- Está bem, mãe; quando quiser já podemos ir.

     Tomar um duche, lavar os dentes, aspergir-se com água-de-colónia, não estava nos hábitos dessa gente. O banho tomava-se uma vez por semana, numa bacia de barro, ou numa pipa serrada a meio, chamada tina, ou tinalha, num local improvisado para esse efeito, pois na altura as habitações da aldeia não tinham casas de banho. As necessidades fisiológicas faziam-se numa retrete improvisada, por cima da corte do gado, e até se faziam nos campos, encostado a um muro ou detrás de uma frondosa árvore. A maioria das mulheres rurais não usava cuecas, pelo que lhes era fácil urinar por entre a saia. Punham-se a jeito, e já estava!   
     O caminho era longo, mas como era sempre a descer e, como sói dizer-se, «a descer todos os santos ajudam», não demoraram sequer duas horas. Utilizaram atalhos, por entre milheirais, atravessaram um regato, quase seco nessa altura do ano, e começaram a ver as primeiras habitações da Vila e sobretudo a torre de menagem do castelo, chamado outrora, segundo afirmam os historiadores, «Fortaleza do Minho». Nada daquilo lhes era estranho, costumavam ir à feira semanal vender uns frangos, ovos, produtos agrícolas, enfim tudo aquilo que se pudesse transformar nuns escudos para poderem comprar arroz, azeite, bacalhau, carapaus e sardinhas, etc., bens que eles não produziam.

- Lina, estamos na Vila. Vamos direitinhas à vivenda do Senhor Doutor Juiz – eu já sei onde ele mora. Temos que ter cuidado com o cão, é dos grandes e ferozes. Foi treinado para guardar casas e quintas. É capaz de esfarrapar uma pessoa, se não a conhece; depois de se habituar a nós já não nos faz mal, pelo contrário, tudo fará para nos defender.

- Ó mãe, o raio do cão ainda se vai meter connosco.
- Não te assustes, porque nós não entramos; só se formos acompanhadas pelo seu dono. Além disso, está preso à corrente. Quando te conhecer até obedece às tuas ordens, vais ver.
- Oxalá seja assim. Eu até gosto de cães, convivo com eles desde pequenina, mas este mete-me medo. Só aqueles olhos…  
- Sossega. Ele não salta o muro. Dizem que é da alta serra, um lobeiro puro-sangue; pelo tamanho e cor, deve ser.
       
     Chegaram finalmente à porta do juiz. Tocaram um badalo colocado junto ao portão e uma voz potente fez-se ouvir:

- Quem está aí à porta?
- É a nova candidata a criada, Senhor Doutor Juiz. Podemos entrar?
- Só um momento. Tenho que chamar o Leão.

     Dentro de dois minutos apareceu o juiz. Era alto, elegante, com um bigode bem aparado, muito bem vestido, cheirava a limpo, via-se que era pessoa asseada. Clara e a filha olharam para ele com respeito, algo intimidadas, e esperaram que fosse ele o primeiro a falar.

- Qual das duas quer ser a minha empregada? – perguntou, embora já calculasse que era a mais nova. Não queria ferir susceptibilidades.
- É a minha filha Lina, Senhor Doutor Juiz. Nunca trabalhou em nenhuma casa, mas eu ensinei-lhe a fazer tudo: na cozinha e nos quartos.
- Está bem. Espero que não me desiluda. O ordenado já deve saber: são duzentos escudos por mês. Para começar não é mal. Entrem, para verem a moradia. Eu daqui a pouco tenho que sair. Vais tratar-me primeiro do quarto e depois vais para a cozinha. Por enquanto moro aqui sozinho, por isso o trabalho não é muito.

     A habitação não era muito grande. Na parte de cima tinha três quartos, uma sala, uma cozinha com despensa. Na parte de baixo existia espaço para um ou dois automóveis, e ainda para se fazer, quem assim o quisesse, algum trabalho artesanal. Havia um pequeno tanque e um estendal para secar a roupa. Nessa altura ainda não andavam por ali as máquinas de roupa. Cozinhava-se a carvão ou a lenha. Havia lojas ali perto que vendiam de tudo – houvesse dinheiro para comprar.    
     O juiz antes de sair prendeu o cão a um arame comprido, não fosse o diabo tecê-las, e assim também o animal podia andar um pouco de um lado para o outro. Clara, depois do Senhor Juiz sair, virou-se para a filha e disse-lhe:

- Esta vai ser a tua nova casa. Respeita o patrão, não escutes conversas, e sobretudo não mexas nos seus papéis. Arruma tudo como deve ser e não te metas em namoricos com os rapazes da Vila, olha que têm fama de malandros e de pelintras.
- Está bem, mãe. Não se preocupe, vai correr tudo bem. Não se esqueça que já tenho quinze anos.
- Eu sei; és já uma senhorinha.

     Despediram-se com um abraço, e Lina dirigiu-se para dentro da residência – o trabalho estava à sua espera. Fez a cama do juiz, limpou o quarto, o chão estava a precisar de cera, mas isso ficaria para outra altura. Teve o máximo cuidado para não partir umas bugigangas que o magistrado tinha em cima de um móvel, mirou as fotografias, que gente fina, rostos bonitos, roupas caras, aquilo é que era gente de classe!

      Ela nunca passaria da cepa torta, pensava. Sem instrução, sem nenhuma beleza especial, apenas aqueles olhos que penetravam a alma dos mortais. Em casa, quando fitava demoradamente o gato, ou o cão, conseguia que eles adormecessem profundamente. Era um dom que ela possuía. Esse, ninguém lho tiraria.
     Passou revista a toda a habitação, um dos quartos estava vazio, o outro, mais pequeno, possuía uma cama de ferro, uma mesinha de cabeceira, uma arca com roupas. Nada de luxos. «Deve ser o quarto da criada», pensou. Dirigiu-se à cozinha. Viu o que havia: alguma carne, peixe, duas postas de bacalhau a demolhar. Delineou rapidamente o almoço: bacalhau cozido com batatas e couves. O Senhor Doutor tinha uma pequena horta e as couves estavam no ponto de se apanhar. Tinha que pedir algum dinheiro ao patrão para fazer compras: azeite, arroz, massa, etc. – a despensa estava quase vazia. Acendeu o lume, pôs água a ferver, e dirigiu-se à horta a fim de colher a hortaliça. As ervas daninhas já começavam a aparecer, pelo que havia necessidade de as arrancar. Precisava também de mais variedade: umas nabiças, pimentos, penca, repolho, etc. «A outra criada não cuidava muito bem da horta», pensou.
     Passava pouco do meio-dia quando chega o Senhor Doutor.

- Está tudo a correr bem?
- Sim, Senhor Doutor Juiz. O jantar já está pronto, já se pode sentar à mesa.
- Não é jantar, é almoço! Nos meios rurais é que se chama assim. Nós, na vila ou cidade, dizemos pequeno-almoço de manhã cedo, almoço ao meio-dia, e jantar às sete e meia da tarde, ou da noite. E já agora, como é que te chamas? A tua mãe disse-me o teu nome, mas eu não fixei.
- Chamo-me Lina, mas na aldeia toda a gente me trata por Pràlina.
- Pràlina?! – admirou-se, esboçando um sorriso.
- Sim. Foram as minhas colegas da escola que me puseram essa nomeada.
- Eu prefiro chamar-te Lina. É o teu nome e fica-te bem. Assenta-te que nem uma luva. E agora vamos almoçar.

     Serviu o magistrado na sala e ela ficou a comer na cozinha, numa mesa pequena que ali estava. Os criados não estavam autorizados a comer à mesma mesa do patrão. O juiz chamou a rapariga e pediu-lhe:         

- Vais à garagem e trazes de lá uma garrafa de vinho tinto. Não te demores.
- Vou numa perna e venho noutra, Senhor Doutor.

     De facto na garagem havia diversas garrafas de vinho, branco e tinto, do verde, ofertas de lavradores. Também lá se via um presunto pendurado, algumas cebolas e alhos, uma barrica com batatas, alguma fruta. O juiz tratava-se bem, pensou ela. Antes do magistrado voltar para o tribunal pediu-lhe algum dinheiro.

- É para comprar algumas coisas que faltam – disse ela.
- Toma uma nota de cinquenta escudos, deve chegar. E o que vais fazer para o jantar?
- Tenho ali carne de vaca, se calhar fazia-a com massa.
- Óptimo. Parece que escolhi bem a serviçal. És ainda muito nova, mas a tua mãe ensinou-te bem. Hã! já me esquecia: tu vais dormir no quarto pequeno, tens roupa de cama no baú. Põe nesse quarto as tuas pertenças. Quando fores às compras adquire um avental para ti, para não te sujares.  

- Está bem, Senhor Doutor, cumprirei todas as ordens.  
// continua...

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha



Cartas de um castrejo

14.ª - «Senhor Redactor: cá do meu pobre tugúrio só posso vislumbrar, e através de lentes foscas, os revérberos da civilização; como o meio em que vivo carece, especialmente, do principal factor, do primordial veículo conducente a Ela, como sou daqueles que antes quebrar que torcer, e queria que a minha freguesia comparticipasse das regalias que há muitos anos fruem as demais do concelho (*), não calarei, perante a nossa Câmara [Municipal], paróquia e demais entidades que superintendem na instrução, as justas reclamações por mais que uma vez aqui feitas, com relação à deficiência do ensino. Repetindo: temos uma só escola para o ensino masculino e instalada nas piores condições higiénicas e pedagógicas, e sem o material indispensável a uma boa organização educativa; e, isto, para o mínimo de 300 crianças em idade escolar! Este facto que, à primeira vista parece normal, é um atentado grave à nossa dignidade, ao nosso progresso e aos nossos interesses materiais e morais; porque o progredir de um povo está indubitavelmente no seu grau de ilustração, e nós nem a temos nem no-la dão, conquanto a reclamemos de há muito e sejamos até capazes de maiores sacrifícios para obtê-la. Um meio, pois, para sairmos deste marasmo que, se não nos aniquila, nos não deixa progredir. Faça, a junta de paróquia, uma representação à Câmara Municipal de Melgaço, acompanhada dos respectivos recenseamentos escolares, e pedindo uma escola para cada grupo de 40 alunos de ambos os sexos. Esta colectividade decerto ouvirá o justo apelo; mas quando não, que a faça, ao menos, por intermédio da inspecção de círculo, chegar ao Ministro da Instrução. Se não der certo, pela primeira vez, sucedam-se as tentativas, que… tanto dá a água na pedra que a faz amolecer. Valeu? Castro Laboreiro, 5/5/1916.»


/// (*) Trata-se, obviamente, de um exagero, pois as outras freguesias do concelho também não tinham quaisquer regalias, ou se as possuíam eram pouco significativas. Lá diz o ditado: «onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão.» É certo que a primeira república tentou melhorar o ensino em Portugal, mas a maldita guerra 1914-1918 veio estragar todos os planos dos governos para o desenvolvimento; o dinheiro destinado ao ensino foi gasto com armas, com equipamento militar, etc. // Não esquecer, também, que para Castro Laboreiro não havia estrada; as freguesias ditas da montanha apenas tinham caminhos, que no inverno se tornavam quase intransitáveis.    

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha


CASA DO RIO DO PORTO


     Sita na freguesia da Vila, Santa Maria da Porta. As armas foram concedidas a 1 de Setembro de 1793 ao Dr. João Manuel Gomes de Abreu Cunha Araújo. / O primeiro membro dessa família a residir no Rio do Porto parece que foi o Dr. João António da Cunha Araújo, nascido no século XVIII, filho de Bento da Cunha Araújo e de Maria Gonçalves, ou Maria Martins (moradores na Rua do Campo, depois Rua do Espírito Santo, perto da igreja matriz da Vila), casado com Maria Gomes de Abreu, ou Mariana Gomes de Figueiroa (ver “O Meu Livro das Gerações Melgacenses”, volume I, página 409). / Na obra citada, p. 410, lê-se: «Ora em 17/5/1748 D. António da Glória, mestre doutor de Sagrada Teologia na Universidade de Coimbra e Prior Donatário do Real Mosteiro do Salvador de Paderne e os mais padres conciliares emprazaram por três vidas aos fidalgos da Casa do Rio do Porto o prazo das Serenadas, que pertencera à família da mulher.» / No entanto, quem solicitou à rainha Maria I a justificação de nobreza e mandou colocar as pedras de armas no frontispício da Casa foi o Dr. João Manuel Gomes de Abreu Cunha Araújo, filho do Dr. João António de Araújo e de Mariana Gomes de Abreu, neto paterno de Bento da Cunha Araújo e de Maria Martins, e bisneto de Gonçalo da Cunha Araújo e de Catarina Esteves; e neto materno de João Gomes de Abreu e de Maria Gomes de Figueiroa, e bisneto de Manuel Gomes de Abreu e de Jerónima de Castro. // Este Dr. João Manuel casou a 6/8/1768 com Isabel Maria, filha do capitão Manuel Luís Pereira da Gama e de Maria de Araújo, moradores no Campo da Feira de Fora, SMP, e faleceu em 1813. Além da Casa, havia também uma quinta, com caseiros e feitor. / É curioso que esta Casa Solar tenha sido adquirida, na década de vinte do século XX, pelo então secretário de finanças em Melgaço, Ernesto Viriato dos Passos Ferreira da Silva, natural de Braga, casado em Melgaço a 21/9/1918 com Margarida Maria, neta ilegítima do fidalgo da dita Casa, Caetano José de Abreu Cunha Araújo, e de Margarida Carolina de Castro Álvares de Barros. O acontecimento gerou polémica, pois Ernesto Viriato era o chefe dos republicanos no concelho, e foi Governador Civil de Viana em 1925. Acusaram-no de monárquico, mas ele argumentou publicamente que comprara aquela Casa fidalga porque estava em ruínas e queria recuperá-la. O certo é que ali viveu com a família, com o peso daqueles brasões à porta de entrada.    



domingo, 21 de fevereiro de 2016

ENTRE MORTOS E FERIDOS 
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)

romance 

Por Joaquim A. Rocha 




8.º Capítulo

EM VÉSPERAS DA PARTIDA

     Naquela tarde de domingo, e devido a terem chegado depois da hora habitual, os dois amigos não acharam nenhuma mesa vazia no Café Suiça. Nem na esplanada, do lado da Praça da Figueira, conseguiram arranjar um lugar. De mútuo acordo dirigiram-se ao Café Gelo, também na Praça do Rossio. Podiam ter ido ao Nicola, mas esse estava sempre cheio. Depois de sentados, e aguardando a sua vez para serem atendidos, Henrique, roído de curiosidade, tudo querendo saber, interroga:

- Os seus passos encaminharam-se para Melgaço, suponho.
- Não, meu amigo. Na minha terra já não tinha familiares chegados, apenas primos em terceiro grau. Fui para Lisboa, para um lindo bairro chamado das Laranjeiras, pertinho do Jardim Zoológico, para casa da minha irmã Ludovina; se tivesse ido ao Minho provavelmente desertaria – não me agradava nada a ideia de ir combater para as matas dos cafres. Caga na saquinha como eu era, amedrontado como andava, não me seria difícil passar a fronteira, dar às de vila diogo.
  
     O amigo ficou com algumas dúvidas e pergunta, meio atarantado:

- Mas, se não possuía dinheiro, ia para onde?!

     Cândido, apercebendo-se da contradição, responde:

- O drama era esse. O maldito metal. Sempre a atrapalhar a minha vida. Enfim, sonhos! Durante esses dias pouco mais fiz do que meditar. Ia de vez em quando até à janela, olhava o exterior como numa despedida definitiva. Uma manhã ouvi alguém a cantar. Parecia ser a voz da sopeirinha, cujos patrões moravam ali defronte. Não me recordo nitidamente do seu rosto, mas aquele som entrou em mim como um canto de sereia e apaziguou o meu ânimo, acalmou a minha ira. Podia ser coincidência, mas até parece que a melodia fora feita só para mim.
- Você é um romântico!
- Talvez seja. Sensibilizou-me tanto, tanto, que peguei num papel e numa caneta e escrevi os versos seguintes:

                              Rosa Maria
                              minha linda flor
                              eu a ti daria
                              todo o meu amor;
                              lindos olhos teus Maria
                              minha rosa em flor
                              eu por eles capaz seria
                              de matar morrer amor;
                              se ouvires dizer, Maria,
                              que uma bala me deu fim
                              reza sempre um padre nosso
                              em cada dia por mim;
                              vou partir para combater
                              em favor desta nação
                              vou à minha obrigação
                              desta pátria defender;
                              posso ter vida ou morrer
                              ter tristeza ou alegria
                             posso ainda voltar um dia
                             à minha terra natal;
                             não creias de mim o mal
                             se ouvires dizer, Maria;
                             eu um dia voltarei
                             à minha terra tão querida
                             cheio de força e de vida
                             e feliz ainda serei;
                             parto a cumprir uma lei
                             à qual fugir não posso
                             vou defender o que é nosso
                             o que é teu e da nação
                             e tu à noite, ao serão,
                             reza sempre um padre nosso;
                             posso muito tempo estar
                             sem te poder escrever
                             mas eu juro, podes crer,
                             que contigo hei-de casar;
                             se uma bala me matar
                             ou tiver um outro fim
                             só por isso, só assim,
                             não cumpro o meu juramento;
                             tu reza sempre um momento
                             em cada dia por mim.   


     Henrique ouviu com algum assombro estes versos. Comenta:

- Não lhe conhecia essa faceta, essa veia poética. Ela adorou…
- Qual quê! A sopeira nunca leu este ingénuo poema, o mais certo também era ela não saber ler, nem sequer soube da minha presença naquele local. O nome que lhe atribuí podia ter sido outro qualquer, simplesmente este soou-me bem ao ouvido e é óptimo para rimar.
- E depois, o que aconteceu? – interroga, enternecido, o nosso Henrique.
- Bem, vagueei pelas ruas da cidade de Ulisses, olhar perdido e distante, coração amarfanhado, chocho e só. Podes crer, meu caro amigo, que várias vezes me apeteceu escapulir, pirar-me, desaparecer do mapa: mas iria para onde?! Logo a seguir seria preso, metido num barco ou num avião e atirado na mesma para as matas africanas, desterrado – todos nós tínhamos plena consciência disso. O regime não perdoava àqueles que o contrariassem. Para evitar as fileiras do exército havia apenas duas maneiras: 1.ª - não comparecer à inspecção militar e de imediato emigrar clandestinamente (se a sorte favorecesse o candidato a emigrante este nunca vestiria a farda; se tivesse azar…); 2.ª - ter amigos poderosos no sistema e através dum pedido sair livre da inspecção médica.
- E por amparo de mãe, por doença?
- Nessa época até os coxos e aqueles que tinham falta de dedos nas mãos, desde que possuíssem o do gatilho, eram considerados aptos! Somente os desprovidos de vista, os privados de pernas e braços, os filhos únicos, cuja mãe fosse viúva e apresentasse uma declaração de extrema pobreza, passada pela Repartição de Finanças e pela Junta de Freguesia, alegando que ele era o seu exclusivo amparo, é que se livravam. De resto tudo servia. Dou-te um exemplo: na minha Companhia havia um colega com a altura aproximada de metro e meio – quase um pigmeu!
- Ouvi dizer que alguns indivíduos, filhos de gente graúda, se safaram da tropa, pagando. Terá algum laivo de veracidade?
- De certo modo, já te respondi a essa questão. Sabes, o vil metal compra quase tudo e a quase toda a gente! É de admitir que alguns pais ricos e influentes tudo fizessem, tudo tentassem, para livrar os seus rebentos da maldita e indesejável guerra colonial. Eu dei-te o exemplo do ricaço, filho de proprietários de agências de viagens. Por outro lado, há sempre alguém que aceita dinheiro em troca de favores. A corrupção faz parte de qualquer sociedade. A honestidade, a moral, não é para toda a gente – muitos aproveitam-se do lugar destacado que ocupam para conseguirem obter rendimentos ilícitos. E há uma coisa que eu aprendi: a ideologia, que nos obriga a ser coerentes, é posta de parte por alguns quando lesa interesses materiais.
- Nem sempre o que se diz corresponde à verdade – comenta Henrique, ainda na verdura dos seus anos.
- A corrupção e a chantagem sempre existiram, fazem parte da luta pela sobrevivência. Só se é perfeito quando tudo se alcança, daí não haver ninguém perfeito! Há santos nos altares que foram refinados patifes; e alguns seres humanos morreram desonrados sendo eles boas pessoas! Tudo faz parte de um percurso irregular, um caminhar aos solavancos. Até o deus dos cristãos errou, segundo a bíblia: criou o universo, criou o homem à sua semelhança, e o que aconteceu? Adão sentiu-se só e quis uma companheira. Tiveram dois filhos: Abel e Caim, e, este último, mata, sem dó nem piedade, o seu mano! E chamam a isso, perfeição?!  
- O meu amigo Cândido é um filósofo. Eu estou de acordo consigo nalgumas coisas. A cunha, por exemplo: é uma instituição nacional, todos a ela recorrem – uns para conseguir um bom emprego, outros para subirem na carreira, outros até para obterem uma simples consulta médica! Ninguém pode passar sem recorrer à maldita; além disso todas as sociedades geram privilegiados. Os nossos pais ensinam-nos a ser correctos, bons cidadãos, mas depois a vida não permite que a gente se sirva amiúde dessas virtudes! Se nos comportarmos sempre bem somos tidos por lorpas e todos nos enganam, porque somos bonzinhos. É complexa a vida.

     Cândido, depois de beber calmamente a sua imperial, diz ao amigo:


- Caro Rique, tu és muito jovem, muita coisa ainda irás observar neste mundo belo e diabólico, mas desde já te aconselho: procura sempre o equilíbrio. O radicalismo não nos leva a lado nenhum. Não embarques em fanatismos religiosos nem em ideologias baratas. A vida é o somatório de muitos acontecimentos. Mas não falemos mais nessas coisas, senão esgotamos o assunto e depois ficamos calados como mudos. Até breve.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha



MACRÓBIOS

GONÇALVES, Dorinda. Filha de António Joaquim Gonçalves e de Maria Rosa Alves, lavradores, residentes no lugar da Baldosa. Neta paterna de Luís Gonçalves e de Maria Joana Fernandes; neta materna de Manuel Joaquim Alves e de Carolina Rosa Alves. Nasceu no lugar da Baldosa, Gave, a 6/8/1900, e no dia seguinte foi batizada na igreja católica local. Padrinhos: António Joaquim Dias Monteiro e sua esposa, Adelinda Gonçalves, camponeses. // Morou toda a vida no lugar onde nascera. // Foi mãe solteira de Benezinda Gonçalves e de Justino Gonçalves, que lhe deram netos, e estes por sua vez deram-lhe bisnetos… // A 6/8/2000 completou os cem anos de idade e houve missa na capela da Baldosa em sua homenagem; depois serviu-se um almoço na casa da filha a familiares e convidados. // Faleceu na sua casa da Gave a 17/11/2003, com 103 anos de idade.


RODRIGUES, José. Filho de Francisco Joaquim Rodrigues e de Rosa Esteves, lavradores, residentes no lugar do Cerdeiral. Neto paterno de Luís Manuel Rodrigues e de Luísa Maria Domingues; neto materno de João Esteves e de Maria Joana Gonçalves. Nasceu na Gave a 30/4/1898 e foi batizado na igreja paroquial a 1 de Maio desse mesmo ano. Padrinhos: José Esteves, solteiro, e Maria Joana Gonçalves, casada, avó materna do batizando, ambos do lugar de Virtelo, Cousso. // Casou na CRCM a 23/4/1926 com a sua conterrânea Rosa Pires, de 30 anos de idade, filha de António Joaquim Pires e de Maria da Rocha. // A sua esposa faleceu na Gave a 8/2/1977. // Ele morreu em Paços a 2/10/1996, em casa de uma filha, com 98 anos de idade, viúvo, e foi sepultado no cemitério paroquial da sua freguesia de nascimento. // continua...

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

SONETOS

Por Joaquim A. Rocha


MORTE BRANCA
  
Naquela fria e alva madrugada,
Enfrentando a chuva e o nevoeiro,
Partiram sós, de Castro Laboreiro,
Carolina e sua irmã amada.

Alegres, riam por tudo e por nada,
No bolso levavam algum dinheiro;
Iam comprar, no estrangeiro,
O bacalhau, azeite, e a pescada.

No regresso, por terras da Galiza,
Ao entrar na alta e dura montanha,
A neve caía com insistência;

E no inferno o demónio giza,
Com estranho ódio, raiva e manha,
A morte da virtude, da inocência.




Nota: este soneto inspira-se num facto verídico; as duas irmãs, no regresso da Galiza,  ficaram soterradas na neve a 17/12/1917; a Carolina casara em Outubro desse ano. Foram encontradas já sem vida. 





domingo, 14 de fevereiro de 2016

GENTES DE MELGAÇO
(biografias)

Por Joaquim A. Rocha

D. João VI

Luís de Sousa Gama. Filho de Luís Caetano de Sousa Gama, viúvo, capitão-mor do termo de Melgaço, natural de Prado, Melgaço, e de Maria Antónia da Ribera de Peina, solteira, natural de Alveios, Galiza, moradores na Casa e Quinta da Serra, sita em Prado. Nasceu em 1790. // Assentou praça no Regimento de Artilharia de Viana do Castelo em 1808. // Em princípios de 1809 foi admitido no número dos cadetes do seu regimento (artilharia). // A 16/10/1809, na situação de cadete de artilharia, entrou nas campanhas da Guerra Peninsular. // Depois embarcou para o Rio de Janeiro onde, a 14/5/1818, foi promovido a alferes da 2.ª Companhia de Caçadores, e em Outubro do mesmo ano a tenente. // A 26/2/1821, com mais dez cabecilhas, arrancou para o Rocio as forças do seu comando, com as quais, e com outras, se exigiu de D. João VI o juramento da Constituição. // Por decreto de 13/5/1821 foi nomeado capitão de infantaria e adido do Estado Maior do Rio de Janeiro. // A 26/6/1821 foi agraciado com o hábito de Cristo, cujas insígnias usou desde esse dia até à morte. // Regressou a Portugal, fazendo a sua apresentação no Quartel de São Julião da Torre. // Casou em Lisboa em 1826 com Maria Delfina, filha do “brasileiro” José Correia da Silva, de Vermoim, Famalicão, e de Rosa Grangel do Amaral, brasileira, do Rio de Janeiro, a qual foi dotada pelos pais em oito contos de réis, importância significativa para aquela época. // Veio com a esposa para Melgaço, mas aqui viveu em sobressalto, devido à guerra civil. A maior parte dos fidalgos melgacences abraçava a causa de D. Miguel, o absolutismo, estando assim em campos opostos ao dele, que defendia a Carta Constitucional mandada elaborar por D. Pedro IV. Sofreu imenso, mas os anos passaram, e a 19/4/1834 pôde enfim aclamar D. Maria II como legítima herdeira ao trono português. O liberalismo vingara. // Foi provedor da Santa Casa da Misericórdia de Melgaço em 1838 e 1839. // Reformou-se em 1843 com a patente de major, passando a adido da Companhia de Veteranos de Valença, sendo então nomeado Governador Militar da Praça de Melgaço, cargo que desempenhou enquanto foi vivo, extinguindo-se com ele. // Faleceu a 31/12/1870. // Deixou geração.         

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

QUADRAS AO DEUS DARÁ

Por Joaquim A. Rocha



Falei com a natureza
Numa noite de luar;
Inda lhe resta beleza,
Mas em vias de findar.

*

Falei com a natureza,
Achei-a muito doente;
Lembrei-lhe a sua beleza,
Sorriu e ficou contente.

*

Quando Cristo ao Céu subiu
Gritou de longe aos mortais:
«Matem-se todos na Terra,
A mim não me matam mais

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha




MELGAÇO EM AGOSTO


     Este ano, sim! Cheguei a Melgaço no dia 7 e regressei a Lisboa no dia 24. Pude assim assistir, do primeiro ao último dia, à Festa da Cultura. Assisti também à festa da Senhora da Pastoriza, cujo interesse (refiro-me à parte não religiosa) residiu na atuação do conjunto melgacense «Contacto». As festas que se fazem nas diversas freguesias do concelho não têm, como antigamente, a publicidade suficiente, ou então são prejudicadas pelas festas da Vila, cujo orçamento é bem superior. Recordo-me que era raro eu perder uma festa: sobretudo aquelas que se realizavam perto da vila ou que tinham acesso fácil por estrada (Paços, Cristóval, Penso). Sempre a pé, pois os carros nessa altura contavam-se pelos dedos das mãos e só os ricos os possuíam! Os rapazes, e tantos eram, juntavam-se na Vila Velha e daí partiam rumo à “aldeia”, ao encontro das moçoilas que, ouvindo as alegres músicas que os altifalantes do senhor Reinales lhes transmitiam, os aguardavam ansiosamente! Em pequenos grupos, duas ou três, passeavam sorridentes, e de soslaio iam vendo se eles formavam também o grupo com o mesmo número; depois o seu passo ia diminuindo, até pararem completamente. Os rapazes aproximavam-se e o mais atrevido dirigia-lhes a palavra: - «Um lindo dia!» Quase como num eco, uma delas, afastando-se um pouco, respondia: - «Lindo dia, sim senhor!» E começava a caminhada, já formados os pares, à volta da igreja. Pouco havia para dizer nesses tempos: uma palavra, um simples gesto, um olhar conivente, diziam tudo. O namoro, o amor, o casamento, os filhos, tudo nascia de um quase silêncio!
     A festa da cultura começou na sexta-feira (dia 13) por volta das onze horas, na Biblioteca Municipal. Em primeiro lugar foram entregues os prémios dos V Jogos Florais (considero errado que alguns premiados não estejam presentes no ato da entrega dos mesmos; as pessoas que gostam de escrever – é o meu caso – concorrem pelo simples prazer da escrita, da participação, e não do prémio em si, em termos de dinheiro insignificante. O facto de se encontrarem longe não justifica a sua ausência; eu já tive dois prémios – em 1991 e em 1993 – e fui levantá-los). Seria desejável que os residentes no concelho concorressem mais aos Jogos Florais, fossem mais participativos. Fico admirado e triste por não haver jovens do ensino secundário a concorrer, e a ganhar. Será que os jovens melgacenses não têm interesse pela história da sua terra? Não têm talento e veia poética para escreverem um poema ao seu torrão natal? Ou será que as discotecas e a televisão lhes ocupam todos os tempos livres? É certo que se pode perguntar: «Escrever para quê? Para quem?» Eu fiquei dececionado ao ver o pavilhão onde se encontravam expostos os trabalhos dos vencedores quase sempre vazio; pelo contrário, no pavilhão onde se vendia alvarinho ao copo havia sempre gente! Mas por isso, deixo de escrever? Não mais concorro? Penso que se todos aqueles que escrevem abandonassem a caneta porque têm poucos leitores jamais haveria escritores dignos desse nome. Quase todos os poetas conquistam os seus leitores depois da morte física. Há, no entanto, exceções: Miguel Torga, Eugénio de Andrade, Sofia Melo Andresen…
     Como todos os anos, e após a entrega dos prémios, os oradores convidados proferiram discursos breves, mas importantes, sobre temas ligados ao nosso concelho. Este ano, além dos senhores padres Júlio Vaz e Aníbal Rodrigues, cónego António Vaz e Doutor José Marques, tivemos a presença da Doutora Alexandra Sousa Lima, que nos deu conta das descobertas arqueológicas que se têm verificado recentemente na freguesia de Castro Laboreiro.
     No edifício da Câmara Municipal estiveram expostos trabalhos de cerâmica do jovem Carlos de Oliveira, um artista a despontar, e peças de arte (autênticas jóias), feitas a partir de ferro velho e cujo autor, Luís Passos, da Areosa, não quer delas desfazer-se por dinheiro nenhum! - «Talvez a partir da peça número 100», disse-me ele.
     Nesses três dias de festa houve um pouco de tudo: futebol, música, dança, cortejo etnográfico, como em anos anteriores. Até fado! O “velho” Arnaldo Caçolas a cantar fado! Não canta lá muito bem, mas é uma voz melgacense. Fez-me lembrar o tempo em que o senhor Franklin Carneiro tocava guitarra e “fadistas de domingo” cantavam fado de Coimbra!
     O grupo musical dos bombeiros voluntários de Melgaço merece o nosso aplauso. A jovem vocalista, cujo nome não fixei, tem uma voz maravilhosa! Quanto à presença dos «Sitiados» na Festa da Cultura, parece-me um pouco deslocada. É um facto que eles atraem gente de todo o lado: Monção, Valença, Galiza, mas noite dentro (cerca da meia noite) e fora do ambiente natural da festa. Este grupo atua onde lhes pagam e nada tem a ver com manifestações culturais. Além disso, são exigentes: no preço, na segurança, nas condições de atuação. Será que a nossa Festa se vai tornar famosa graças aos famosíssimos conjuntos musicais? Melgaço, um novo Alvalade? O padre Júlio tem razão: «A Festa da Cultura pede uma revisão cultural séria e objetiva.»            
     A cultura, como se sabe, tem duas origens: a popular, criada pelo povo – poesia, contos, traje, artesanato, danças, etc., e a erudita, criada pelos intelectuais – poesia, teatro, narrativa, ensaio histórico, pintura, escultura, arquitetura, etc. Quando se deseja fazer uma Festa da Cultura de âmbito local, concelhia, como deve ser o caso da nossa, tem de se ter isso em conta e não misturar «alhos com bugalhos», isto é, ter pavilhões daqui e dali, comes-e-bebes junto aos pavilhões! – isso parece mais uma feira do que um festa! Por que não pôr à disposição de cada freguesia do concelho o seu pavilhão? Por que não realçar os trabalhos dos participantes nos jogos florais com a leitura dos textos? O próprio grupo musical dos bombeiros poderia musicar alguns dos poemas. Por que não uma peça de teatro integrada na Festa? A cultura não se pode encerrar numa redoma de vidro, mas a originalidade ainda é possível.
     Esta Festa é muito importante para o nosso concelho – não a deixem cair na banalização torpe! Querem contratar grupos de fora para animar as noites melgacenses durante o verão? Façam-no; mas não numa convivência promíscua!
     As montras das lojas, salvo raras exceções, têm um aspeto pouco asseado e com imensa falta de gosto! Por que não fazer um concurso de montras? Enriqueceria sobremaneira a festa e a Vila de Melgaço ganharia com isso.    


Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 993, de 1/10/1993.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

POEMAS DO VENTO

Por Joaquim A. Rocha



GATO VADIO


Ó gato que mias
de frio e de fome
vem prà minha beira
toma lá e come

Já te vou servir
um lauto jantar
um rato gordinho
que vais adorar

Ó gato que mias
vem prà minha beira
livrar-te do frio
aqui na lareira

Vou dar-te leitinho
da vaca leiteira
vem, gato lindinho
para a minha beira

Foge já do frio
vem matar a fome
vem prà minha beira
toma lá e come

Depois do manjar
podes dormecer
nesta linda cama
de pêlo a valer

E podes sonhar
os sonhos bonitos
os da tua infância
atrás dos ratitos