terça-feira, 21 de junho de 2016

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha


MELGAÇO E REMOÃES


     Como disse em artigo anterior (ver A Voz de Melgaço n.º 957) o nome Melgaço deve provir de Melkart, deus fenício. Os fenícios, povo de comerciantes, inventores do alfabeto a partir de outros sistemas de escrita, percorreram toda a península ibérica, trocando e vendendo os seus famosos produtos, sobretudo tecidos de lã e seda, cuja cor púrpura a todos impressionava. Os ricos e nobres usavam-nos com grande requinte. A propósito da púrpura existe uma lenda curiosa. Certo dia um fenício vai com o seu cão até à praia. Como estava calor, o cão correu para a água. Feliz com o seu banho, voltou alegremente para junto do seu dono, fazendo-lhe copiosas festas. O homem vestia uma túnica branca, quase até aos pés. O focinho do animal manchou a túnica. Quando o homem se apercebeu do que tinha acontecido, bateu no cãozito. Depois seguiu para casa a fim de tirar as nódoas da roupa. A mancha, porém, teimou em ficar. O homem volta à praia com o seu companheiro de quatro patas e verifica que ele tinha estado em contacto com uma variedade de moluscos, cuja tinta se impregnava nos tecidos, sendo quase impossível tirá-la. Estava descoberta a púrpura. Ficou famosa a púrpura de Tiro, cidade fenícia, junto ao mediterrâneo.
     Segundo alguns olisipógrafos, Lisboa deve também o seu nome aos fenícios. O seu alfabeto não possuía vogais. A escrita deles era silábica; limitava-se «a anotar a sílaba, isto é, uma realidade sempre pronunciável e fácil de isolar», embora «da sílaba só anote a consoante, elemento essencial para indicar o sentido, deixando que a vogal seja fornecida pelo leitor», segundo escreveu o Professor Meillet. Foram os gregos, seus rivais no comércio do mediterrâneo e costa atlântica, que as acrescentaram com caráter permanente. É através deles, gregos, que os latinos, e outros povos europeus, vêm mais tarde a tomar conhecimento do código escrito.
     Melkart, com esta forma, é pois palavra grega. Na sua Gramática Histórica o Professor Doutor Ismael Coutinho ensina-nos que «nos empréstimos tomados ao grego, representava o latim o K por g: gummi <grego kómmi; gobius <kóbiós; gubernare <kubernân.» Logo, o k de Melkart deve ter desaparecido ainda no latim. Quanto à permanência do nome deve referir-se que os romanos respeitaram, de uma maneira geral, os topónimos, o mesmo aconteceu mais tarde com os suevos e visigodos. Os árabes não tiveram nenhum papel relevante nesta zona da península ibérica.
     Como estamos em maré de nomes, hoje vou fazer uma tentativa para explicar o topónimo Remoães. O padre Aníbal Rodrigues, pároco de Castro Laboreiro, ao elaborar um pequeno roteiro turístico-cultural do concelho, em 1983, referiu-se a Remoães do seguinte modo: «Este nome é pouco usual. A sua origem deve relacionar-se com os remos do rio (remoanes) – passagem de barco no rio – os homens que dirigiam os barcos.» Embora esta asserção peque por vaga, o padre Aníbal dá-nos uma pista para se chegar à provável origem: «Num monte de forma pirâmide, a norte da igreja paroquial, à distância de uns quinhentos metros aproximadamente, encontram-se vestígios de uma antiga povoação castreja – antigo castro, de há dois mil e quinhentos anos.» Esses castros foram construídos, como se sabe, pelos celtas, povo oriundo do centro da Europa. Uma das suas tribos chamava-se precisamente Remi (Remos, em português moderno). Foram eles que fundaram Reims, cidade francesa no Departamento de Marne. Informa-nos a Enciclopédia Verbo que Reims era a «principal cidade dos celtas Remi» e que «quando da ocupação romana era uma das povoações mais florescentes da Galácia.» Pois bem, os habitantes de Reims designam-se rémois, cuja pronúncia é remuá.
     Não há qualquer dúvida que os celtas estiveram no território que é hoje a freguesia de Remoães por volta de quinhentos anos antes desta era, há dois mil e quinhentos anos, portanto! Aí devem ter permanecido durante séculos, isolados ou agrupados com outras tribos, até à chegada dos romanos. Com a vinda destes para a península ibérica, os celtas tiveram de se romanizar, pelo menos adotando a língua (embora com uma pronúncia algo alterada) e a escrita dos vencedores. A língua celta e a língua latina têm muitas afinidades, pois ambas provêm do remoto indo-europeu. Se foram eles que deram ou não o nome a esta localidade só a arqueologia e a linguística nos poderão tirar essa dúvida, mas que as hipóteses são muitas, isso são. A terminação «anes» é consequência da passagem do latim para o português. Compare-se Chaviães que, no foral dado a Melgaço por Afonso Henriques, aparece escrito Chavianes (de Flavianus).
     Remoães esteve sempre no plural (Remoanes = a terra dos Remos?), nunca se escreveu ou pronunciou, segundo me parece, no singular, pois se assim tivesse acontecido daria Remoão e não Remoães.
     Acerca do antigo dialeto galeziano (galaico-português) já alguém disse que «não é desarrazoado afirmar que o tratamento diferente que teve o latim nessa região compreende-se, por ter sido ocupada pelos celtas e suevos, e haver constituído um feudo, que mais tarde se tornou independente
     Que os romanos estiveram em Remoães também não há dúvidas; demonstra-o claramente o nome Folia, que significa, folha, folhagem. Quando os romanos construíram a ponte da Folia certamente haveria nesse local muitas árvores frondosas, daí o nome.
     Se quiséssemos especular ainda sobre o nome Remoães poderíamos fazê-lo derivar de remolares, homens que fazem ou consertam remos. Em catalão, remolar tem o mesmo significado! O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, transcreve a seguinte passagem de 1434: «… fazemo-lo mestre dos remolares, assim e pela guisa que o ele havia…» O que prova que esta profissão existiu. Aliás, Lisboa tem uma rua com esse nome. Não custa, pois, acreditar que nesse sítio, hoje Remoães, houvesse há alguns séculos atrás uma oficina, na qual se fabricariam e consertavam remos. O rio Minho era, em tempos idos, mais navegável do que é hoje; e, portanto, ver-se-iam no seu leito muitos mais barcos do que atualmente.
     Sem achados de vulto na área da arqueologia, e de outras ciências afins, nada poderemos afirmar sem corrermos graves riscos de fraude científica. Estamos ainda no campo das hipóteses. Esperemos que um dia Melgaço suscite curiosidade à comunidade científica, portuguesa e estrangeira; se assim acontecer, esclarecer-se-ão certamente muitas dúvidas que ainda e teimosamente persistem. Os remoanenses que me desculpem por eu não lhes dar certezas.                                    



Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1006, de 1/5/1994.

domingo, 19 de junho de 2016

MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS

Por Augusto César Esteves



... continuação.

«De villa de Melgatio
  
        In dei nomine. Ego Alfonsus pelagii et uxor mea Marina Johannis facimus placi um de una orta nostra que iacet in ripa de regario qui currit inter heerada et leprosos de Melgazo. Vobis domno martino et conventui de fenalis damus atque concedimus vobis ipsam ortam peralia vestra orta et per una domo quas nobis datis. ita ut per eis reddamus monasterio sancte marie de fenalibus anuatim. V. solidos. in die pasce. Qui hoc pactum rumpere voluerit pectet alteri parti vel cuvocem suam dederit. cc. solidos. et carta maneat in suo roibore. Regnante rege domno santio in portugalia. Tenente valadares. M. Gil. in sede tuda. L. episcopo. Judices in melgazo. Rudericus Johannis. et rudericus menendi. Facta carta. Sub era. M. CC. LXX. VIII. Qui presentes fuerunt.

             Andreas – testes // Rudericos Johannis – testes
             Garsias petris – testes // Ordonius qui notuit.» ([1])


       Como hoje, via-se ali a capelinha siglada junto da via pública e ao lado a pequena casa onde curtiram dores e saudades do convívio humano aqueles infelizes sepultados em vida, uma e outra e suas rendas herança desses tempos recuados recolhida em 1531 pela nossa Santa Casa e estava para dizer levantadas pelo primeiro gafo sem para tanto concorrerem o consilium melgacense ou o coração dos reis. Como a longevidade lhe tirou as forças para ser bem administrada, esta Gafaria foi apanhada pela engrenagem da administração central e veio por último cair no âmbito da Misericórdia da localidade, porque:

   «...na dita Vila havia um hospital que se chamava de São Gião que fora instituído para nele se curarem lázaros, os quais havia muitos anos que aí não havia e tinha o dito hospital certas propriedades que rendiam em cada um ano todas juntamente setecentos e trinta e dois réis, e andavam mal aproveitadas e sem administrador a que de direito pertencesse a administração dele e que os provedores da comarca elegiam quem administrasse os bens do dito hospital e cumprisse os encarregos da Instituição dele, e lhe ordenavam por seu trabalho a quinta parte do dito rendimento...»

         E como, atendendo ao exposto, tudo el-rei anexou à Santa Casa, esta passou a tomar contas aos rendeiros e a dá-las aos contadores das obras, terços e resíduos. Um caderno de papel onde aquelas contas se anotavam, apesar de roído por ratos, amarelecido por humidade e com falta das duas primeiras folhas e de muitas outras, encarrega-se de elucidar acerca da sua administração e até fornece um contributo sobre a existência da lepra no concelho em data avançada da história pátria, pois nele se lê:

   «Aos catorze de Maio do ano de mil e quinhentos e quarenta e quatro deu Álvaro Aº ([2]) ao lázaro cento e oito réis perante mim, tabelião
                                                                                                   
                                                            João Gonçalves

E noutras folhas, mais à frente:

   «Aos trinta dias do mês de Julho e ano de mil e quinhentos e quarenta e sete na vila de Melgaço, nas pousadas donde pousa o licenciado João Dias, cavaleiro da Ordem de Avis, corregedor e contador e provedor dos resíduos nesta comarca, perante el-rei nosso Senhor; e ele tomou conta Álvaro de Amorim, mordomo de São Gião, assim dos resíduos da dita Ordem como do que tem recebido e despesa e achou o seguinte...

   «Despesa que deu o provedor

   E deu ao lázaro que estava em São Gião, e se finou, trezentos réis (300 réis) que estão neste livro atrás assinados - Martim Lopes

   A Misericórdia, chamando a si esta herança e recolhendo-a, assumiu correlativas obrigações. Se as cumpriu ou não com escrúpulo pode-se aferir pelo extracto de uma escritura de 22/9/1658, outorgada pelo vigário de Paços, padre Miguel Araújo Pita, provedor da Misericórdia e mais irmãos da sua mesa administradora no livro de notas de Domingos Francisco do Prado, pois nela se escreveu:

   «...fazendo seus antecessores petição ao muito reverendo doutor João Moniz de Carvalho, provisor da Corte e arcebispo de Braga para efeito de se haver de dizer missa na ermida de São Julião, sita no arrabalde desta Vila, ordenada com imagem e o mais necessário, o dito reverendo Doutor por informação que disto mandara tomar, mandara que se juntasse escritura para que se obrigasse esta Casa da Santa Misericórdia com especial hipoteca à fábrica e ornato dela como mais largamente constaria na dita petição, pelo que ela para a fábrica e reparos e ornamentos e missas e culto divino da dita capela para nela se celebrarem as mais coisas necessárias queriam dotar como de feito logo dotaram de ora para todo o sempre jamais à dita ermida as propriedades seguintes: uma leira de vinha e herdade sita detrás da Ermida de São Julião que partia pela vereda que vai para a Orada e da outra parte com caminho que vai para Cavaleiros, e assim mais o campo e vinha sita abaixo da ermida de São Julião que levará de semeadura campo e vinha seis alqueires de pão pouco mais ou menos que parte do nascente com vinha de Pedro Esteves e do poente com campo de Domingos Gonçalves e com quem mais direitamente partir deva, as quais propriedades haviam por obrigadas à dita ermida e capela de hoje para todo o sempre jamais para a fábrica e ornato dela, os quais estariam sempre obrigados à dita ermida e capela e se obrigavam com suas pessoas e rendas e pensões da dita Casa da Misericórdia a terem e manterem e haverem por boa esta escritura e se fabricam a dita capela pelos bens acima nomeados e rendas desta casa e pedem por mercê ao dito reverendo doutor provisor...»

     Para aprestar a capela obras se fizeram à custa da Misericórdia. Os livros da Santa Casa pouco adiantam para o conhecimento da sua acção de bem-fazer nesta época, mas o despacho do provisor lavrado no processo organizado sob as vistas do arcebispo é um excelente testemunho esclarecedor do estado de ruína da capelinha e talvez as suas palavras expliquem a causa de não se verem siglas em todas as pedras e o motivo de outras pequenas anomalias.
  
Diz assim:

   «Na escritura se faz especial hipoteca mas não se declara o rendimento dos bens obrigados nela, mas visto que da obrigação da fábrica desta ermida a especial hipoteca não tira a geral com que na mesma escritura se obriga a Casa da Misericórdia por os ditos bens e pelas rendas da Casa a terem manter esta ermida e fábrica dela a julgo bastante e a si regista e se passa comissão visto haver sido arruinada e de novo reparada para o reverendo pároco a benzer na forma do ritual romano e que com isso se possa dizer missa nela...»



[1]  Sumário: 1240 — Afonso Pais e Marinha Eanes, sua mulher, trocam com D. Martinho, abade de Fiães, e seu mosteiro, uma horta sita junto do regato que corre entre a Orada e a gafaria de Melgaço, por outra horta e uma casa do referido mosteiro, ao qual deviam pagar também, anualmente, cinco soldos, no dia da Páscoa. // Falta a menção do mês e do dia desta permuta, mas sabe-se que o contrato foi realizado no reinado de D. Sancho II, sendo terra-tenente de Valadares M(artinho) Gil, bispo de Tui, D. Lucas, e juízes de Melgaço Rodrigo Eanes e Rodrigo Mendes e que o notário foi Ordonho. (J.M.)
[2]  Dúvida de leitura: Afonso? Araújo? // continua...

sexta-feira, 17 de junho de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

concebido e organizado por Joaquim A. Rocha 



escritores melgacenses



- Francisco Augusto Igrejas (Gu). Nasceu na Vila de Melgaço a 30 de Abril de 1916 e faleceu na mesma Vila a 15 de Março de 1996. Foi enfermeiro no hospital da Santa Casa da Misericórdia de Melgaço e cartulário da dita Santa Casa da Misericórdia. Escreveu vários poemas no jornal “Notícias de Melgaço”, a maior parte deles na forma de gazetilhas, brincando com tudo e com todos. Em 1989 a Câmara Municipal de Melgaço editou os seus poemas, com o título «Poesia Popular», caderno n.º 6.

Por dar-te um beijo na testa
deixaste de me falar;
não te faças tão modesta,
porque uma acção como esta
é acto de respeitar.

Eu tenho de respeitar-te,
porque já tens namorado;
mas quero também lembrar-te
- quer aqui, quer noutra parte -
sou casado e ... bem casado.

Por isso, de hoje em diante,
tu esquece o que lá vai;
não foi um beijo de amante,
nem pecador, nem galante,
mas sim um beijo de pai. 




- Padre Júlio Hilarião Vaz. Nasceu no lugar da Adedela, freguesia de Fiães, a 21 de Outubro de 1916, e faleceu na cidade de Braga, onde vivera grande parte da sua vida, a 17 de Janeiro de 2009. Obras: «Caminho do Apostolado», «À Luz das Encíclicas», «Actualização», «À Margem da Humanae Vitae», «Última Lição», «Associações Mutualistas do Clero», «Na Terra de Inês Negra», «Padre Júlio Apresenta Mário», além de outras obras e artigos de jornal, sobretudo em A Voz de Melgaço e Diário do Minho. Além de padre, foi também professor. 

quarta-feira, 15 de junho de 2016

LEMBRANÇAS AMARGAS
romance

Por Joaquim A. Rocha

croça: a gabardine dos pobres


IX

Os túneis da alma também podem ser iluminados


     Insaciável, vou adquirindo informação, jogando os trunfos disponíveis, ansioso por saber o meu passado e o dos meus maiores; não é uma curiosidade mórbida que me move, que me faz rodopiar sobre um tempo que não é o meu mas que julgo também pertencer-me por sangue, pelos laços que me ligam a essas pessoas. Vão ter mais uma oportunidade de escutar uma conversa com o meu irmão Olavo, o meu irmão inteiro, como gosto de sublinhar. Desta vez encontrámo-nos sentados num banco do jardim, perto do coreto da Vila. Não façam qualquer ruído e escutem:

- Então tu, depois de fazeres a quarta classe, foste para a cidade dos alfacinhas?
- Fiz a quarta-classe em Julho de 1954, na escola primária Conde de Ferreira, situada bem ao cimo da Praça da República, era meu professor o senhor Romano, iria completar treze anos em Setembro, portanto ainda a acabei com doze anos de idade. Nessa altura estava a nossa mãe amantizada com o velho, o tendeiro Acúrsio. O bruxo não gostava nada de mim, fazia-me a vida negra, da cor do basalto, o que ele queria era que saísse de casa, para se sentir mais à vontade com a velhota, tu não estorvavas, eras um badameco, um medricas, um zé-ninguém, um choninhas, não contavas absolutamente para nada; eu não, era teso, impunha-lhe respeito, comigo não se metia, ai não, que o derretia, que o amassava de pancada, rachava-o ao meio, ao filho da mãe, ao feiticeiro duma figa. Nas férias grandes puseram-me a servir, em Cendrães, a tratar do gado e a cavar os campos, a puxar a charrua, a mim, uma criança, e sem nunca ter trabalhado na agricultura; a tua mãe colaborava com a besta, e aplaudia, tinha medo dele, mas também o que ela queria era alguém que lhe desse vinho e que dormisse com ela, uma badalhoca, uma cabra, andar com aquele velho porco, que nem sequer era da terra, era de fora, da terra dos bandidos.
- A mamã não teve culpa, coitada, estava farta de sofrer, precisava de alguém que olhasse por ela e pelos dois filhos mais novos.
- Olhar?! Maltratar, queres tu dizer. Contigo as coisas eram diferentes, eras um coitado, não podias com um gato pelo rabo; ora eu tinha corpo, já fazia a barba com treze anos, tinha cara de homem. Mal acabei a escola mandaram-me plantar pinheiros para a floresta, a mais de vinte quilómetros da Vila; tinha de ir a pé, carregado com batatas, feijão, toucinho, uma panela para cozinhar, alimentos para uma semana, tinha de passar por aqueles montes, os lobos uivando, assustavam qualquer um, depois de lá chegar tinha de trabalhar como um escravo, tínhamos de plantar milhares de pinheiros, a comida era escassa, dormíamos no chão, em cima de palha de centeio, aquilo não era vida para um rapaz de treze anos. Os homens cheiravam mal, não tomavam banho, tudo era porco, imundo!
- Então resolveste ir para Lisboa.
- Não foi fácil, pois era necessário ter lá alguém que me arranjasse emprego, o Ambrósio estava prestes a ir para a América do Sul e a Susana era criada doméstica, pouco me poderiam valer, mesmo assim ainda ajudaram. Conheciam um indivíduo aqui da Vila, o senhor Anastácio, que possuía estabelecimento de comércio na capital do país, fui para lá, mas o ordenado era demasiado baixo, e fartava-me de trabalhar, tinha de entregar os cabazes das compras aos fregueses, subir centenas de escadas todos os dias, agora os prédios já têm elevador, naquele tempo não tinham, carregado que nem uma mula, sem horários, coitado de mim, cada dia mais fraco, ia toupando, rebentando pelas costuras.
- Foste promovido…
- Saiu de lá um empregado de balcão e o senhor Anastácio deu-me esse lugar à experiência; fiz tudo para agradar, agradei, a minha vida melhorou um bocadinho, mas olha que a comida não prestava, e o pagamento era uma ninharia, uma miséria, não havia uma hora de sair, trabalhava mais de doze horas por dia!
- Estavas a ser explorado.
- Se estava! Bem o podes dizer. O tipo enriquecia à nossa custa, todos se aproveitam dos pobres, depois vão à igreja bater com a mão no peito, os filhos de uma macaca, é para Deus lhes perdoar, mas não lhes perdoa, que ele é justo, está do lado dos desprotegidos, dos sem rumo, mas olha que às vezes tenho dúvidas, há ricos que nunca são castigados e fartam-se de fazer patifarias, de cometer pecados.
- Que sabemos nós disso?! Estiveste em Lisboa até ires para a tropa.
- Que remédio; tinha imensas saudades da terra, dos amigos, mas nessa cidade é que tinha o emprego, não era grande coisa mas era melhor do que nada, aqui só se fosse trabalhar para a estrada, abrir valas para os cabos telefónicos, ou outra vez para a floresta, isso nunca mais, fartei-me de sofrer, só o cheiro daqueles homens imundos, nunca tomavam banho, eu ainda ia ao rio tomar, mas eles nem isso, cheiravam mal que tresandavam, uma imundície, não se aguentava, e ainda por cima se peidavam, fartavam-se de comer feijão e depois mais parecia uma guerra de puns, e os filhos da mãe riam, achavam graça àquilo! Eu sentia repugnância, metia a cabeça debaixo da manta, mas o cheiro era demais; depois as pulgas, as gajas mordiam-me todo, de manhã acordava cheio de picadelas, e os piolhos, às centenas, era uma autêntica tragédia, pior ainda do que em nossa casa. Em Lisboa havia mais limpeza, dois lençóis brancos na cama, uma caminha pequenina só para mim, alugara um quarto na Baixa, numas águas-furtadas, baratucho, o pior era quando chovia, o telhado estava uma desgraça, o prédio era do século passado, se sofrera obras já devia ter sido há muitos anos, a dona era uma macróbia e não tinha dinheiro para o mandar consertar, quando caísse, caía, mas primeiro ainda havia de morrer ela.
- É engraçado, quando eu e a mamã fomos a Lisboa visitar-vos em 1961 estavas tu prestes a entrar na recruta. // (continua...)

segunda-feira, 13 de junho de 2016


OS MEUS SONETOS
e
POEMAS DO VENTO

Por Joaquim A.Rocha


desenho de Rama


Chamaram-te Fernando no batismo,
Nado na capital, bela Lisboa;
 De apelido, és apenas Pessoa,
Foste pomba da paz, bravio sismo.

Estiveste sempre à beira do abismo,
Cai, não cai, como no mar a canoa;
Deste à luz heterónimos à toa,
Ao mundo lições de patriotismo.

Pudera eu dar-te um lindo poema,
A flor mais cheirosa do meu jardim,
Uma palavra virgem, cujo tema

Me magoasse fundo e só a mim.
Se gravasse na pele, tal emblema;
Fosse rijo e belo como marfim!

*

O poeta é um experimentador,
tudo experimenta na vida;
até quando experimenta a dor,
ele di-la consentida!


A Fernando Pessoa:

Olá amigo!
Hoje estou aqui para falar contigo.
Sabes: há relativamente pouco tempo
que te conheço. Ouvia falar de ti,
Vagamente, na escola.
Não te conhecia! Os teus poemas,
 no secundário, não eram dados
para análise. «São de difícil
interpretação, só para alunos do
superior», diziam.
Será que os professores, não te
conhecendo, não queriam arriscar?
De quem é a culpa?
Tu és um quebra-cabeças. De facto
quiseste ser muitos simultaneamente!
Um corpo tão franzino como o teu!
Com tantos outros dentro!
Quantos cérebros tinhas? «Tantos
quantos eu fui», responder-me-ias.
E todos complexos, na sua complexidade/
simplicidade. Um afirmava e logo
outro dos teus outros afirmava o
contrário do outro – o diabo!
Por que quiseste ser tantos?
Um bastava. Mas não! Quiseste ser tu,
mais o contrário de ti, mais o crítico
de ti e dos outros, e ainda o mestre!
E mais, muito mais! Quiseste ser tudo
e todos! E nós? Não pensaste em nós.
Nem sequer pensaste, tu que tanto
 pensaste, que nós também queríamos
um lugar ao sol ou à sombra. Uma
migalha apenas!
Sabes? Conseguiste baralhar-nos!
Hoje estudamos a tua obra, fragmento
a fragmento, e depois juntamos tudo
e voltamos a estudá-la! Depois,
tentamos saber aquilo que é teu, o
que é do outro dos teus outros, e
chegamos sempre à mesma conclusão:
tu, és tu, menos os outros tus, e
mais os outros tus.
Claro que estás a rir-te. Sempre te
 riste interiormente! Julgas-te
superior, eu sei. Talvez o sejas…
Que sabias coisas, sabias. Não está
isso em causa. Mas também tinhas
muita ronha nesse corpo! Tu não foste
um super Camões: foste um super gozão!
Brincaste sempre connosco. Não foste
somente um fingidor: foste um exímio
experimentador. O teu sentido do real
era irreal! Nunca acreditaste muito
na metafísica, porque estavas por
dentro dela. Aristóteles e Platão
nada te ensinaram a esse respeito.
Engendraste um mundo onde nem sequer
tu cabias! Recorreste às estrelas
e elas fecharam-te a porta na cara!
Daí nasceu o grande drama da tua
vida. O Rossio na Betesga!
Mas por que estou eu a falar de ti?
A gastar o meu papel e tinta, o
meu tempo, o meu latim?!
- De ti, cuja vida é uma incógnita?
Tu és uma obra, e a obra que tu és
ganhou a imortalidade. As nuvens
abriram para ela uma estrada de luz!

sábado, 11 de junho de 2016

OS NOVOS LUSÍADAS
(tentativa de continuação de «Os Lusíadas» de Camões)

Por Joaquim A. Rocha



35

Pra produzir açúcar, engenhos mil,
De África levaram os escravos;
Gente da Europa foi para o Brasil
Em busca de ouro, rosas e cravos.
De todo o lado, jovem, ou senil,
Queria pertencer ao grupo dos nababos.
Por fim, a descoberta da borracha,
Criou mais fortunas e nova taxa.

36

Pelo sertão entraram garimpeiros,
Famintos de vis metais preciosos;
Malta sem trabalho, aventureiros,
Todos eles rudes, gananciosos.
Vendiam a alma por trinta dinheiros,
Terríveis mentes, olhos capciosos.
Ai que corja aquela, tão matreira,
Mais feroz do que a fera verdadeira!

37

E para que serviu tanto metal,
Tanto ódio, tanta cruel matança?
Riqueza sem controlo é letal,
Rói em todos nós a doce esperança.
O bem sucumbe perante o mal,
A justiça falece na balança.
E não há céu que tal obra suporte,
Por isso, por sentença dá a morte.

38

Esqueçamos o gigante Brasil,
Percorramos cem terras, novos mundos,
Vamos em busca da pimenta e anil,
Doutros sonhos mais nobres e fecundos.
Comprar bugiganga por um ceitil,
Enfrentar aqueles rostos iracundos.
Mostrar-lhes que a nação portuguesa
É dura em guerra, meiga na justeza. 


quinta-feira, 9 de junho de 2016

LINA  - Filha de Pã
(romance)

Por Joaquim A. Rocha 

desenho de Luís Filipe G. Pinto Rodrigues

// continuação (ver em 5/5/2016).

   O Mário partiu a correr, o tempo caminhava velozmente. Por volta das dez da noite tinha que estar no portão do Senhor Juiz, as namoradas não gostam de esperar. A horta ficava ali a dois passos. Colheu tudo o que a irmã lhe pedira e voltou para casa. Depois de comer uma boa tigela de caldo, com um bocado de toucinho, broa e chouriço lá dentro, saiu apressadamente. Desceu as escadas das muralhas antigas, foi pela avenida, ainda em construção, olhou para o portão, mas a moça ainda lá não estava. Via-se luz na cozinha. Devia estar a arrumar a louça. Logo a seguir a luz sumiu-se. Um vulto desceu as escadas da casa, falou com o cão, com certeza prevenindo-o da chegada de alguém estranho, e logo a seguir dirigiu-se para o exterior. O apaixonado desceu os cinco ou seis degraus que separavam a avenida do portão, e espera que ela o abra. Havia um luar quase apagado, sem brilho, a lua não estava nas suas noites. Ela abriu o metálico portão, o qual rangeu, lamuriento, e logo o viu:

- Ainda bem que vieste. O Senhor Doutor já se deitou. Agora só sai do quarto de manhã. Estamos à vontade.
- Tu sabes que eu gosto de ti há imenso tempo, mas sempre me rejeitaste, eu até já perdera a esperança de um dia vires a ser minha.
- Eu gosto muito de ti, mas como sou nova não estava interessada em namorar, foi só por isso.
- Ainda bem que mudaste de opinião, eu ia ficando doido por tua causa.
- O melhor é entrares; aqui pode alguém ver-nos, e depois já sabes, é um falatório dos diabos. O Senhor Doutor Juiz corria logo comigo.

     O “Brilhantina”, como era conhecido, entrou, mas receoso. Aquele cão assustava-o deveras. Está bem, ela acalmava-o, mas nunca fiando. Por outro lado, se o patrão dela se apercebe disparava sobre ele, pois os juízes andavam armados; tinha-lhe dito, isso mesmo, o empregado do tribunal. Estava a arriscar a vida, mas por a sua amada tudo valia a pena. Ela pegou-lhe na mão e levou-o para a garagem. Depois fechou a porta e diz-lhe com meiguice:

- Então aqui não estamos muito melhor?
- Eu desejei tanto este momento; estar a sós contigo, beijar-te, ter-te só para mim.

     Tremia como varas verdes. O coração ameaçava saltar do peito. Pensava que o que se estava a passar era um simples sonho, um devaneio; quando acordasse tudo se dissiparia. Ela, esperta como era, apercebeu-se da sua agitação, pega-lhe na mão direita e coloca-a nos seus seios. Esfrega-os e ele, pouco a pouco, vai aderindo. Põe-lhe a mão esquerda nas costas, encosta-a mais a ele, abana-a como se fosse peneira, e espreme-a como se fora esponja; procura a sua boca e beija-a com sofreguidão, entrando em êxtase. Ela baixa-se, estende-se numa manta que ali colocara durante o dia, sobe as saias e fecha lentamente os olhos.  

- Mas tem mil cuidados – diz-lhe; - eu estou pura, virgenzinha, nunca tive nada com homem nenhum; és tu o primeiro.
    
     Ele baixa apressadamente as calças, cheias de remendos, os quais reagem mal àqueles movimentos bruscos, como que pedindo mais calma, pois o tempo e as sucessivas lavagens no tanque público tinham causado algumas mossas; ajoelha-se e deita-se sobre aquele corpo aparentemente sedento de brincadeira. Passado um pouco resfolegava, parecia um animal no período do cio. Ela não sentia nenhum prazer. Aquele indivíduo metia-lhe asco, nojo! Só o suportava por causa da criança que transportava no seu ventre.

- Não tenhas pressa – solicitou-lhe ela. – Olha que o mundo não acaba hoje.
- Bem sei, mas é a primeira vez que eu faço estas coisas com uma rapariga. Fui algumas vezes à tia Rosela, mas aquilo não presta – está velha e cheira mal, ia vomitando.
- Metes-te com bandalhos! E ainda por cima pagaste. A partir de agora não precisas de procurar esse coiro, tens-me a mim.
    
      Ela brincou demoradamente com ele, fez-lhe cócegas, rebolaram pelo chão, riram-se com vontade. Diz o rapaz:

- Tu é que me surpreendeste: pareces magrinha, mas afinal és cheiinha, não se te notam os ossos.
- Alimento-me bem, não sou como tu, que passas lazeira!
- Ainda hei-de ser rico, vais ver. Quando puder vou para o Brasil.
- Só se fores abanar a árvore das patacas. E quem é que te manda ir?                    
- Isso… não sei; não conheço nenhum parente que esteja lá. Nem sequer amigos. Mas se Deus quiser tudo se consegue.  
- Tenho uma ideia. Se viermos a ser um do outro, marido e mulher, peço ao Senhor Doutor Juiz que te empreste o dinheiro para a viagem.
- Fazes isso?! Disseram-me que os barcos saem de Leixões, ali para os lados do Porto. Até lá, ia de camioneta e de comboio.

     Ela, saturada de tanta conversa, já com sono, as pálpebras fechando-se, diz-lhe:

- Bem: se não te apetece mais, vamos dormir. Eu tenho que me levantar cedo para fazer compras e o pequeno-almoço do Senhor Doutor.
- Deixa-te estar mais um bocadinho – mendigou o rapaz, numa voz quase sumida.
    
     Dali a pouco levantaram-se, ela levou-o até à saída e despediu-se dele com um beijo nos lábios. Subiu as escadinhas, abriu a porta e dirigiu-se ao seu quarto. Não estava em condições de se apresentar ao seu senhor – sentia-se suja, emporcalhada.
     Levantou-se por volta das sete horas. Dirigiu-se à padaria a fim de comprar pão acabado de sair do forno. Que cheirinho! Dava gosto. O Senhor Doutor adorava aquele pão, barrado com manteiga. E que prazer ela sentia em servi-lo, com uma boa chávena de leite de vaca, acabadinho de chegar, sobre o qual deitava meio decilitro de café, a fim de lhe tirar aquela cor branca e dar-lhe outro sabor.
     Era mesmo uma Vila rural: tudo cheio de hortas, de campos, de gado a pastar nos baldios próximos, e até suínos e galináceos se viam pelas ruas! Desde que houvesse dinheiro, nada faltava. O pior é que nem toda a gente ganhava o ordenado do juiz, a maioria do povo português, nesses anos trinta, passava imensas necessidades. Os produtos do campo eram vendidos ao desbarato, ainda por cima às vezes o temporal estragava tudo, o milho escasseava, o centeio era pouco, trigo não se dava naquele clima inóspito de inverno e escaldante no verão. A hortinha ia colmatando algumas falhas alimentares, mas era preciso comprar azeite, arroz, bacalhau, carne de vaca e de vitela, peixe fresco, etc. As conservas de atum e sardinha, compradas ali perto, na Galiza, a preços baixíssimos, iam completando algumas refeições. Para arranjar dinheiro vendiam-se os presuntos, lacões, um ou outro salpicão, mas também havia que dar ao médico, ao pároco…, por isso não se podia vender tudo. O regime político saído da Ditadura Militar era severo, controlava tudo, a produção, os preços, os salários, nada era deixado ao acaso. Ser pobre era um desígnio, quase uma fatalidade.

      A primeira República fora um autêntico desastre, diziam os adeptos do Corporativismo, tinha deixado o país na penúria, os cofres do Estado vazios. A nossa entrada na I Grande Guerra exaurira o Tesouro Nacional. Às tantas já não havia dinheiro nem para mandar cantar um cego! Os governos caíam como tordos! Sem dinheiro, não havia progresso. A fome alastrava por todo o país. As colónias ficaram esquecidas, ninguém lhes ligava! Os militares que saíram de Braga, chefiados pelo general Gomes da Costa, puseram cobro à bagunça. Acabou-se a República. Mas, pelos vistos, eles também não desejavam a monarquia. Chamaram um Professor Catedrático, que leccionava em Coimbra, e escrevia sobre matérias financeiras num jornal nacional, a fim de dirigir as Finanças do país. O que aconteceu toda a gente o sabe: pouco a pouco foi-se apoderando do poder e às tantas transforma-se no Chefe, no Senhor Supremo do Estado e da Nação. Criou um modelo político, inspirado na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler, nem República nem Monarquia, um caldo, uma autêntica miscelânea, mistela repugnante, embora houvesse presidente da “República”, sempre um militar, mas praticamente sem quaisquer poderes, um presidente a bem dizer a fingir! // continua...