quarta-feira, 30 de novembro de 2016

POEMAS DO VENTO
 
Por Joaquim A. Rocha



A GERINGONÇA

 

Lembra-me a torre de Pisa

Inclinada, a vergar;

O bacalhau à Narcisa,

Servido no alto mar.

 

Não ganhou as eleições,

O nauta que deu à costa;

Trazia lama na roupa,

As botas cheias de bosta.

 

Ninguém nele apostava,

Nem os companheiros do jogo;

Mas o homem acreditava

Que o canhão fazia fogo.

 

Disparou contra a direita,

A esquerda aplaudiu;

A margem era estreita,

Mesmo assim não desistiu.

 

Pôs-se à frente do partido,

À cabeça do governo;

Ficou forte, destemido,

Enfrentou céu e inferno.

 

Chamaram-lhe geringonça

À coisa que ele formou;

Pesava menos que a onça,

Mas nem o vento a levou.

 

Passou um ano a tremer,

Cai não cai, mas não caiu;

Apesar dela gemer,

A coitada resistiu.

 

Vai passar mais um anito,

Ou vinte, até centénio;

Este luso é um grito,

É português, é um génio.

 

É um verdadeiro artista,

Aplaudido de pé;

Inspirou já um fadista,

De seu nome Chico Zé.

 

Ele ama a coisa pública,

Faz tudo prà melhorar;

Quer ser chefe da república,

Todos nele vão votar.

 

Ele engonça, desengonça,

Anda prà frente e pra trás;

E assim vai geringonça

Nas mãos deste capataz.

 

Um dia dá ao artelho,

Foge prò médio oriente;

Leva com ele o coelho,

A geringonça da gente.

 

Deixa este povo a chorar,

Perdidinho de saudades;

O país vai soçobrar,

Estilhaços pelo ar

Já se veem pelas herdades.

 

Talvez Dom Sebastião,

Volte do seu cativeiro;

Traga de novo a ilusão

A este povo fagueiro.

 

 

Novembro/2016

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS
 
Por Augusto César Esteves


capela da Senhora da Orada

// continuação...

     As dissensões entre os visigodos enfraqueceram o seu espírito guerreiro e os mouros, aproveitando a decadência dos dominadores da península desembarcaram no sul da Espanha em 711 e rapidamente a conquistaram, menos as Astúrias, onde se refugiaram os cristãos. Muza por aqui deve ter passado em 712 e Abdelaziz, seu filho, também na erupção do ano seguinte. E se acreditarmos ter sucedido a Melgaço o mesmo que a Lugo na primeira invasão ou a Ourense na expedição imediata, Muza ou Abdelaziz aqui fizeram uma razia, destruindo a Vila até aos fundamentos e matando todos os seus habitantes, se os melgaceos, escapando-se por entre os caminhos seguidos pelos atacantes, não se embrenharam nas Astúrias para depois, em 718 ou 719, encetarem a luta pela independência sob o comando de Pelágio, travando com o inimigo os primeiros combates.

     Perto de quarenta anos se aguentaram na Galiza os mouros, mas quando D. Afonso I das Astúrias, aí por 751, iniciou a reconquista, avançando até ao sul do Douro, a sua passagem foi simultaneamente uma hecatombe, um terramoto e uma varredoura, porque matou quantos árabes ocupavam o território do actual Minho, destruiu todas as suas obras de defesa – e quem sabe se o oppidum de Melgaço? – e consigo levou para as Astúrias, pelo menos, todos os cristãos das terras baixas, estabelecendo assim uma espécie de cinta de desertos com oásis entre os dois campos adversários.

     Pouco tempo decorreu sem se iniciar o repovoamento destes sítios e porque o conde-bispo Odoário, falecido em 786, o deixou dito no seu testamento, feito muito antes, sabe-se que no princípio da avançada para o sul foi povoada a vizinha aldeia de Desteriz, mas do repovoamento de Melgaço em nenhum cronicão ou documento escrito ficou memória. // Povoavam-se, então, de preferência aos agregados urbanos as vilas rústicas e como os reis das Astúrias estiveram sempre a atacar os mouros e estes lhes deram o troco na mesma moeda, tarde, mais tarde, em 997, vindo de Braga por aqui deve ter acampado o terrível Almansor, homem capaz também de não ter deixado pedra sobre pedra nesta região, se a todas as passadas vicissitudes o povoado tivesse resistido. Mas, afora o primeiro foral da terra, dez ou doze anos posterior à data fixada, eu não conheço qualquer foco de luz projectado sobre esta incógnita melgacense e bem podiam, pois, estar desabitados aqueles terrenos bravios e ferazes de Melgaço quando D. Afonso Henriques em 1170, segundo dizem, mandou povoar este sítio, porquanto lhe pertencia, como antigas vilas ou romanizadas açambarcadas pelos pretores reis da reconquista leonesa.

     Se os mandou povoar proliferaram tão depressa que já em 1181, na leitura de Alexandre Herculano, ou em 1183, na opinião do Dr. Rui de Azevedo, aqui houve gente bastante para constituir o núcleo necessário para o rei fazer aos seus habitantes a carta e o escrito «de hereditate mea quam habeo in terra Valadarensis in loco predicto Melgacio. Do vobis illam et concedo cum suis terminis et locis antiquis, et medietatem integram de Chavianes per ubi ilam potueritis invenire vel vendicare… ut eam hedificetis atque in ila habitatis

     Eram muitas as propriedades suas, como verificará quem se der ao trabalho de ler, na parte correlativa, as Inquirições Gerais de D. Afonso III, mas no planalto onde se ergue a Vila e nas encostas onde se espraiam os seus arredores, destacavam-se três boas herdades, constituindo reguengos d’el-rei: Santa Maria do Campo, São Fagundes e Santa Maria da Porta. Neste, a estender-se para a Calçada, subindo pelas encostas da Barbosa e declinando para os lados da Orada, no tempo de D. Afonso Henriques e na quadra da co-regência de D. Sancho I, ergueu uma pequena igreja consagrada à Virgem, sob a invocação de Santa Maria, a crença dos primeiros jugadeiros. Estes tinham nascido, estes surgiram no tablado de Melgaço constituindo já uma força desde o seu início; o próprio rei tratou com eles e o orgulhoso clero também. Di-lo o foral, cujas palavras acima aspamos, e repete-se em vários documentos do Livro das Datas do mosteiro de Fiães a propósito da igreja de Santa Maria da Porta, documentos alguns cujo interesse avulta por comprovarem a co-regência dos dois primeiros reis de Portugal. Aí se fala desta igreja tanto em 1183 como em 1185, em 1187 e 1190, e de todas as vezes se menciona como padroeira a Virgem, apenas invocada como Santa Maria. Dela temos também notícia em 1205. O alfobre dos documentos é o mesmo e este marca, talvez, o fim da evolução do nome titular, pois informa o seguinte:
 
                          «De Melgatio

     Sub era M.CC.XL.III. Et quot kalendas idus aprilis, hec est descriptio facta inter abbatem de fenalis, nomime Dominicum, una cum suo conventu, et inter andream grasie, natum hec alumpnum de archidiacono Garsia nuniz, tali pacto et tali conditione ut serviat ipse andreas mihi Garsie nuniz, cum ipsa ecclesia sicut ego voluero in vita mea, et post mortem meam ipse andreas ipsam ecclesiam de Melgazo que est edificata prope portam ipsius ville in vita sua firmite eam teneat, et habeat et in uno quoque anno per die cene domini pro anima mea ad refectorium. VIII. solidos reddat, sancte marie de fenalibos. Et post mortem ipsius andree ipsam ecclesiam integram sine ulto impedimento ad monasterium de fenalis remaneat, ita ut nulius de genere ipsius andree, vocem nec ius super eam habeat. Siquis ex nobis hoc pactum et hoc scriptum implere notuerit; regie voci. D. soldos pariat. Facto pacto et scripto in tempore regis sancii Portugalia. Et de manu eius in Valadares. Martinus Petri. In tuda episcopus petrus. Iudices ville de Melgazo. Piagius Garsie et Johannes Roderici. Ego andreas cum concilio ville de Melgazo hoc pactum et hoc scriptum propria manu roboro tibi abbati dominico de fenali.

                  Petrus – testes; Pelagius – testes; Martinus – testes; Johanes – testes; Midus – testes; Martinus qui notuit.»            

      Pelo tempo em que foi erguida devia ser românica, com siglas, como a ermida da Orada, ou essa capelinha insulada de São Gião, a igreja erguida em honra e louvor da imagem à qual se rezava mais ali ao pé, à beira; que se encontrava mais à mão de semear, mais ali à porta da casa «que est edificata prope portam ipsius ville», nos termos do último documento transcrito – e disto proveio o crisma da Santa Maria da Porta, sem dúvida alguma – mas parece ter havido curta duração terrena. Se nela se não enxerga hoje uma única sigla; se hoje, dela, os olhos apenas descortinam relíquias sagradas na porta principal e no tímpano duma lateral, sinal evidente é desse templo ter desaparecido. Embora as crónicas o não esmiúcem, devem tê-lo arrasado e destruído os leoneses na sua invasão de 1212, só para que outros melgacenses tivessem o trabalho de construir no mesmo local outra igreja. // Esta saiu românica também, mas tão afastada do mimo da Orada, na arte e no tempo, como os pobres jugadeiros construtores o estavam dos poderosos magnates do mosteiro de Fiães e, mesmo assim, talvez a meias com esses frades, se é lícito alguma coisa concluir da leitura do códice n.º 83 do Arquivo Municipal de Guimarães, caligrafia do século XVI no «título de todos os benefícios da comarca de Valença de Contrasta», treslado feito no tempo do Arcebispo de Braga, D. Diogo de Sousa, na parte relativa à apresentação dos párocos: «a metade do mosteiro de Fiães e a outra metade do concelho
  // continua...

sábado, 26 de novembro de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO 


Por Joaquim A. Rocha



escritores melgacenses


António Domingues. Também conhecido por António Bernardo, ou Cordas. Nasceu na freguesia de Castro Laboreiro a 6 de Agosto de 1938 e faleceu em Novembro de 2012. Foi emigrante em França durante vários anos, onde casou com uma senhora francesa. // No ano de 2008 publicou um livro, com o texto em português, edição de autor, ao qual deu o título de «Ecos dos Montes Laboreiro». O introito é do Dr. Américo Rodrigues, natural de Castro Laboreiro, e do Prof. Dr. José Domingues, natural de Lamas do Mouro, ambos ligados ao Núcleo de Estudos e Pesquisa dos Montes Laboreiro. No final tem um glossário, com palavras exclusivamente castrejas. Por exemplo: «sopengo» - pessoa rude, bruta, tosca. // A sua leitura exige muita atenção, em virtude de o português utilizado conter inúmeras imperfeições. O autor reflete sobre determinados assuntos, lembra passagens da sua vida, recordações que ficaram, mistura ficção com realidade, não se sabendo por vezes onde uma começa e a outra acaba.    

 
 *
- Alberto Magno Pereira de Castro. Nasceu na Vila de Melgaço a 16 de Agosto de 1940. Depois do serviço militar cumprido ingressou na Guarda Nacional Republicana, onde atingiu a patente de major na altura da aposentação. Reside em Valença, onde fora capitão da GNR, e presidente da Câmara Municipal pelo Partido Social Democrata (PSD). // Eis algumas das suas obras: «A Praça Forte de Valença do Minho», edição de 1994; «Valença na Guerra da Restauração», edição de 1995; «Gerações Valencianas», I volume editado em 2008; «Gerações Valencianas», II volume editado em 2015. Escreveu alguns poemas, publicados em jornais da região minhota, sobretudo em «A Voz de Melgaço», além de artigos históricos e outros.   

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

LEMBRANÇAS AMARGAS
(romance) 
 
Por Joaquim A. Rocha
 
 
 
 
 
XI
 

As formigas também descansam

 

     Voltemos atrás no tempo; as verduras da idade ainda vestiam o meu cérebro, a realidade e a ficção ainda não tinham fronteiras nítidas. Como tinha ouvido dizer que era costume antigo os sapateiros não trabalharem às segundas-feiras, eis-me a fechar a porta da loja e a ir banhar-me para o rio Minho. Porém, o meu patrão, que para fugir ao calor excessivo que se fazia sentir também ele fora dar um mergulho nas águas límpidas do rio, não gostou nada que eu por lá aparecesse. Venham vocês também tomar um refrescante banho:

 
- Eu não te disse para ficares no estaminé?

- Mas senhor Hilário, você também veio, ontem engraxei sapatos até às três horas da tarde, estou cansado, hoje é segunda, às segundas os sapateiros não costumam trabalhar, você deixou-me lá sozinho, com este calor, e eu vim tomar banho ao rio, eu nem sabia que você estava aqui, se soubesse não tinha vindo, juro-lhe.

- Então toma um banho rápido e vai abrir a oficina, não quero a porta fechada, podem aparecer clientes e depois veem tudo fechado, recebe o calçado que entregarem, que digam para que é, tomas nota num papelinho, eu já vou para cima, não demoro muito, isso de fechar as sapatarias às segundas é com os antigos, eu preciso de ganhar dinheiro, não sou rico, aproveitar é enquanto somos novos, não é com vadiagem e calaceirice que se ganha pilim, eu comecei a trabalhar com dez anos, nem a quarta classe completei, só fiz a terceira, estudar era para os meninos, vós agora sois uns fidalgos, vê lá tu, não trabalhar à segunda, eu trabalhei toda a vida, sábados e domingos, que isto de não trabalhar é para milionários, que até esses trabalham, às vezes mais do que nós, por isso é que eles têm rios de dinheiro, olha o senhor Atílio se não trabalha: às seis da manhã lá vai para o Porto buscar contrabando, é assim que ele se enche, que nós por muito que trabalhemos nunca juntamos nada de nosso, vai-te embora, já te refrescaste.

- E se alguém quiser levar calçado, eu não sei o preço do conserto, não mexo em dinheiro, o que devo fazer?

- Não entregues calçado a ninguém, dizes-lhes que esperem, eu não me demoro, se tiverem pressa que voltem, fiado nem pensar, depois esquecem-se, já tenho alguns calotes, eu não ando a trabalhar de graça, que a sola também a pago, ninguém me dá nada, era o que faltava, que paguem, tu não entregas calçado a ninguém.

- Há um bocado entreguei uns sapatos, vieram para botar meias solas, ao senhor Norberto da Portela, insistiu tanto, disse que precisava deles, que se você lá estivesse também lhos entregava, que confiasse nele, que no dia de feira vinha à Vila e já lhe pagava, eu não pude fazer nada, tive de lhe entregar os sapatos, se não lhos entregasse até me comia vivo!

- Não devias ter feito isso, ai o filho da mãe, nunca mais me paga, agora vais lá e pedes-lhe o dinheirinho, se não to der trazes os sapatos de volta, são trinta escudos, não te esqueças, trinta escudos, vai a correr, tens boas pernas; ai o caloteiro, valeu-se de tu estares sozinho, se eu estivesse lá não os levava, não, que eu não ando a trabalhar para os outros, eu na minha oficina não fio, quem fia é a roca, olha eu a fiar, tenho de pagar a renda, ninguém ma paga, e tenho de comer, ninguém me dá nada, e vestir-me e calçar-me, tudo, eles querem é ver um homem a pedir, vai num pé e vem noutro, ai de ti se não me trazes o dinheiro ou os sapatos.

- É longe!

- Quero lá saber se é longe ou perto, desaparece daqui, mexe-te.        

terça-feira, 22 de novembro de 2016

POEMAS DO VENTO
 
Por Joaquim A. Rocha




O BURRO DO MAJOR

 
 

O tio Zé do “Tringuelheto”,

Analfabeto de nascença,

Aprendeu a ler num folheto

Editado pela Presença.

 
Era um homem genial,

Mais douto do que Ulisses;

Assombrava Portugal

Com as suas mui burrices.

 
Varria as ruas da Vila

Moía grão no moinho

Comia caldo de grila

E batatas com toucinho
 

O inocente rapazinho

Alcunhado de major

Pensava ser espertinho

Em Melgaço era o maior

 
Certo dia o tio José

Prometeu-lhe um burrito

Ia comprá-lo a Loulé

A casa dum ciganito.

 
O pobre do miudinho

Acreditou piamente

Deu-lhe um garrafão de vinho

E pevide de semente.

 
Arranjou longa cordita

Para transportar a besta

Juntava muita palhita

Numa espécie de cesta.

 
Todos os dias visitava

O tio José da vassoura

Nas suas fracas mãos levava

Dois nabos e uma cenoura.
 

- «Tio José, dê-me o burro,

Já estou farto de esperar.»

- «Eu dou-te mas é um murro,

Já me estás a chatear!»
 

- «O senhor é mentiroso,

Prometeu-me em altas vozes.»

- «Não quero ver-te queixoso,

Vou-te dar um quebra-nozes.»

 
- «Eu quero o que prometeu,

Um asno grande e bonito.»

- «Ai menino, dou-lhe o céu,

Em troca do animalzito.

 
- Saiba que o desgraçado

Empanturrou-se de carquejas,

Estava o céu nublado,

Confundiu-as com cerejas!»

 
- «Ai que burro mais burrinho,

Vou ter que andar a pé;

Quem me manda ser parvinho,

Acreditar no tio Zé!»

domingo, 20 de novembro de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha





ROUBOS


     Ao longo dos séculos houve sempre ladrões, pessoas sem escrúpulos, parasitas, vivendo à custa do suor alheio. Nesta rubrica vou omitir o nome dos ladrões, pois nalguns casos ainda existem descendentes e não devemos magoa-los, pois eles não têm culpa nenhuma dos erros cometidos pelos seus antepassados. Segue a ordem cronológica.

   - Em 1912 (era pároco da igreja matriz da Vila de Melgaço o padre Manuel José Domingues), alguém assaltou as caixas das esmolas, levando todo o dinheiro que continham (Correio de Melgaço n.º 14, de 8/9/1912).

*

     - Assaltaram a casa de Francisco de Jesus Vaz, oficial de diligências. Foram presos A.D. e A.D. // F.P. era também um dos indigitados autores do roubo; estava em manobras militares, ficando sob prisão. A cúmplice que os denunciou ficou detida num dos quartos térreos do hospital. A venda das jóias roubadas era feita na tenda do ourives M.S.M., de Monção, que vinha fazer as feiras quinzenais (Correio de Melgaço n.º 67, de 21/9/1913). No número seguinte do jornal, escreveu-se: «Está finalmente descoberto o roubo praticado em casa de Francisco de Jesus Vaz. A glória dessa descoberta cabe ao senhor Rodrigo Augusto dos Santos, chefe da polícia cívica de Viana do Castelo, que aqui tem estado com os polícias civis da mesma cidade, n.º 12, Manuel Ferreira da Fonte, e n.º 9, António Martins de Amaro, em serviço de investigação. O Sr. Santos, que tem sido coadjuvado nestes serviços pelo secretário da administração do concelho, Maker Luís Teixeira Pinto, é duma solicitude e perspicácia pouco vulgares e incansável no desempenho dos seus deveres profissionais. A L. confessara, no dia 14, que o roubo tinha sido praticado por duas vezes, sendo a primeira pelo A.D. e F.P., e a segunda vez por ela e pelo A.D., tendo ela vendido algumas libras e as jóias a A.R.C., esposa do ourives MSM, de Monção. Depois dessa confissão foram presos AD e seu irmão AD, há dias posto em liberdade por nada se apurar contra ele. FP foi preso em Valença por ocasião das manobras, onde estava encorporado no batalhão de infantaria 3, vindo para esta Vila acompanhado do polícia número 9, aqui em serviço. Interrogado, confessou que em a noite de 5/8/1913, estando a jogar o 31, na taberna da Lúcia Fernandes, ali o procurou AD, com quem saiu pouco depois. Este, na rua, convidou-o a irem roubar o Chico, nome por que é conhecido o Francisco Vaz, indo ambos pelo quintal da casa do Vaz e encostando uma escada a uma das janelas, entraram no prédio, roubando de uma cómoda, que estroncaram, o seguinte: dezoito libras, duas correntes, sendo uma double, um par de argolas, um medalhão e dois anéis, tudo de ouro, tendo o produto do roubo sido repartido entre os dois. Declarou que vendera a um contratador de gado quatro libras e que tinha escondido dentro de uma caixa de folha-de-flandres, numa parede do antigo jardim do Sr. Durães, os restantes objectos. Em vista desta confissão, no dia 25, pelas 24 horas, a polícia acompanhou-o ao local indicado, sendo encontrado, metida na parede, uma caixa que continha: uma corrente, metade de outra, um medalhão, um relógio de senhora, quatro libras e um pinto, de prata dourada. Esteve também detido para averiguações JA, sendo posto em liberdade por nada se apurar que o comprometesse. A esposa do ourives MSM – depois de ter estado alguns dias detida e incomunicável, no edifício do hospital, foi ante-ontem posta em liberdade, mediante a fiança de 1.000$00. Serviu de fiador José Maria Moreira, e de testemunhas abonatórias Aurélio Araújo Azevedo e António Luís Fernandes. Aos autores do roubo arbitraram-lhes a fiança de 5.000$00 a cada um» (Correio de Melgaço n.º 68, de 28/9/1913). // «Ainda o roubo: foram entregues às autoridades judiciais os autores do importante roubo de jóias e libras esterlinas praticado nas noites de 5 e 16/8/1913 em casa de Francisco de Jesus Vaz, como pormenorizadamente se relatou. Conservam-se presos na cadeia desta Vila, que tem estado vigiada de noite por patrulhas de cabos de polícia. – O MGP, que durante oito dias esteve incomunicável, foi posto em liberdade no dia 29/9/1913, por nada se ter apurado que o comprometesse. – Também estiveram detidos para averiguações JEP, JAS, VJDS e EGD, sendo todos postos em liberdade por nada se apurar contra eles. Em vista deste resultado, e por terem sido chamados à sua repartição, regressaram a Viana o chefe da polícia senhor Santos e os polícias 9 e 12» (Correio de Melgaço n.º 69, de 5/10/1913). // Em audiência de júri responderam a 30/1/1914 os autores do roubo praticado em Agosto de 1913 em casa de Francisco de Jesus Vaz. O AD foi condenado em dois anos de prisão correcional e seis meses de multa a $10 por dia; a L. a vinte e dois meses de prisão e cinco meses de multa a $10 por dia; e o FP a dezoito meses de prisão e três meses de multa a $10 por dia. Todos foram condenados nas custas e selos do processo, levando-lhe em conta o tempo de prisão já sofrido. O defensor oficioso dos réus foi o Dr. António Francisco de Sousa Araújo (Correio de Melgaço n.º 85, de 1/2/1914).

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

OS NOVOS LUSÍADAS
(tentativa de continuação dos «Lusíadas», de Camões)
 
Por Joaquim A. Rocha
 

D. João III



48

Santo, herói, Sebastião d’Elcano,

Por completar vivo a volta ao mundo;

Recebe propriedades, o magano,  

Títulos, uma arca de ouro, sem fundo; 

Tornou-se déspota, senhor tirano,

Espírito altivo, corpo rotundo…

E pra que fosse eterna sua fama

Dizia-se igual ao nosso Gama!

 
49

Francisco d’Almeida ficou na história.

Da “Índia” foi primeiro vice-rei;

Encheu os pulmões de fama e glória,

Orgulho de Portugal, da sua grei.

Não passava contudo de vanglória

Esquecendo moral, a própria lei.

Cochim, Angediva, e Cananor,

São sinónimo de morte e de dor.

50

No reinado de Dom João terceiro

Nasce a malquista Santa Inquisição.

O pobre herege era o primeiro

A cair na teia da organização.

E no chamado dia derradeiro

Ia à fogueira o judeu e o cristão!

Em nome da douta igreja católica

Matava-se a bruxa e a bucólica.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

LINA - FILHA DE PÃ
romance

Por Joaquim A. Rocha


pote de ferro - ainda se utilizou no século XX


6.º capítulo (continuação)


- Estamos no meu mundo, mulher. Finalmente a casa! Vais acender o lume e fazer qualquer coisa para comermos. Estou cheio de fome: não lhe rilhei quase nada durante o dia.

- O que é que temos para a ceia?

- Temos ovos, presunto, batatas… está tudo no arcaz; e agora trago isto de Melcarte, abre e vê o que te serve, o que te dá jeito. Trata de tudo, que eu vou buscar mais um escano para depois tu te sentares. E pega este mandil, põe-no, para não te sujares.

    

        Lina dirigiu-se para a cozinha e ia vomitando – tanta porcaria! Como se podia viver assim? Nem os suínos suportariam aquele cheiro a fumo e a esterco. Aquela habitação nunca fora limpa!


- Ó senhor Manuel, tem sabão e vassoura?

- Tenho mulher, tenho; eu vou ali à loja buscar.
 

     A mercearia e tasca ficavam no rés-do-chão da casa. Estava tudo misturado: nada obedecia a critérios de arrumação – carvão perto do bacalhau, as vassouras perto do arroz e massa, tudo num turbilhão babélico! As moscas, e outros insectos, entravam e saíam em total liberdade, como em terreno conquistado.  

 
- Aqui tens: se precisares de mais alguma coisa pede.

 
     Ela agarrou-se ao trabalho com determinação e denodo. Pôs água ao lume, depois lavou a louça, arrumou a cozinha e fez a ceia. Desceu à loja, já era quase noite, e chamou o patrão:

- Senhor Manuel: a ceia está pronta; venha para a mesa.

- Já vou; deixa-me só acabar aqui umas coisas.


     Pegou numa garrafa de vinho e subiu. Comeu regaladamente e no final da refeição diz:
 

- Estava excelente; cozinhas muito bem. És uma cozinheira de se lhe tirar o chapéu.

 
   A Lina ficou radiante. Todo aquele esforço havia de ser compensado. Ela não fazia nada sem ser por interesse. Aquele homem solteiro, mais velho do que ela uns vinte anos, cheio de dinheiro, segundo constava, havia de repartir com ela tudo aquilo que tinha, espremê-lo-ia até ao tutano.

     O que mais estranhou em Castro da Serra foi a vestimenta dos seus habitantes, sobretudo as mulheres, vestidas de saias e saiotes de burel, e a sua maneira de falar. Acerca disso até se contava uma história engraçada, uma espécie de anedota: um homem da Ribeira, chamado João – serralheiro, ou funileiro – fora um dia ali levar uns objectos da sua oficina, que tinham ido lá parar a fim de serem consertados. A senhora da casa convidou-o a comer umas batatas, um naco de presunto, e sopa. Dirigiu-se então a uma rapariga, sua criada, que estava sentada, e disse-lhe: «Ó Rôsa! – Eu bou-me ao barbeito. O senhor Juôn se quer mais caldo que o peida. E tu, Rôsa, lebanta o cu e dá-lho    

     Estranhava também a falta de luz eléctrica e água canalizada. Aquela era substituída por candeeiros a petróleo e candeias; esta ia-se buscar ao fontanário, que não ficava longe, mas acarretar água não estava nos seus horizontes; teria de convencer o seu patrão a arranjar um rapaz possante que o fizesse.     

     A habitação possuía quatro quartos, embora pequenos, todos com camas de madeira, pequenas e mal construídas. Ao meio via-se uma sala, não muito grande, com uma mesa tosca e algumas cadeiras, já a pedirem reforma. Casas de banho não havia! Tudo cheirava a fumo, por ali. Tinha imenso trabalho pela frente até que chegasse o dia em que pudesse dizer: «está tudo ao teu gosto, Lina

 
    Em Castro da Serra, naquele tempo, não havia vida nocturna. As pessoas deitavam-se depois do jantar (ceia) e levantavam-se de manhã cedo, mal o sol rompesse. O senhor Manuel, depois de comer, foi até à sala, accionou o candeeiro, e folheou o semanário que trouxera da sede do concelho. Tratava-se do «Notícias de Melcarte», jornal que já se publicava há muitos anos.
 
- Não traz nada de jeito – resmunga.
 
     Lina ouviu aquele som estranho e foi ter com o patrão.
 

- Passa-se alguma coisa, senhor Manuel? Precisa de algo?

- Estava aqui a remoer por causa do jornaleco: não traz notícias de jeito.

- Que é que o senhor quer, não têm nada para lhe porem lá dentro. A mim não me afecta, não sei ler!

- Olha que ler faz falta, criatura. A mim tem-me ajudado muito, sobretudo nas contas. Se fosse analfabeto todos me enganavam.

- Pois à Lina ninguém engana: só quando eu quero.

- Tens pinta de esperta, isso tens, mas ler e escrever ajudava-te um pouco. Mas num ponto dou-te razão: as mulheres não precisam de grande instrução literária; têm de saber cozinhar, tratar da roupa do homem e parirem os filhos, para isso é que elas nasceram. Para as coisas maiores, de grande responsabilidade, existe o homem, o macho, a natureza dotou-o com outros saberes e habilidades.

   Passado um pouco virou-se para ela e diz-lhe:

- Eu durmo no quarto maior, vai ver se a cama está feita; às vezes vem aqui a casa a Angélica, a minha vizinha, dar uma demão nisto.

- Eu vou verificar.

     Dirigiu-se ao quarto. A cama estava de facto feita, mas pessimamente. Só tinha o lençol de baixo, muito sujo, e aquela roupa a cheirar a mofo.

- Ó patrão: não há lençóis lavados? O que lá tem precisa de uma barrela.

- Vê naquele arcaz, mulher. Tenho lá muita roupa.

     Ela abriu um gavetão e retirou de dentro dois lençóis de linho e uma coberta. Dirigiu-se ao quarto, retirou a roupa da cama e fez tudo de novo com a roupa que levara.
 

- Senhor Manuel, já se pode deitar.
 

     Ele entrou, olhou para a cama, e diz:

- Hoje não é dia de festa, mulher! Que luxo!

- O senhor merece dormir todas as noites numa cama limpa. Não se incomode que eu trato de tudo.

- Vou dormir toda a noite como um anjinho.

     Ela saiu pé ante pé, fingindo que ele já estava a dormir, e o castrejo gostou daquele gesto da matreira. Que sorte tivera! Por trezentos e cinquenta escudos por mês tinha arranjado uma criada exemplar: asseada, trabalhadora, e agradável como mulher; uma boa perna, uns seios bonitos, e bem mais nova do que ele… Quem sabe se não a meteria na cama uma dessas noites?

     Lina entrou num dos quartos, retirou toda a roupa da cama, foi buscar roupa lavada, e depois deitou-se. Estava extenuada: a viagem, a ceia, a limpeza, tinham-na arrasado. Quando tudo estivesse em ordem, o trabalho já seria menor.

     Adormeceu profundamente e sonhou com o seu magistrado: estavam na cama, abraçados um ao outro, beijavam-se freneticamente, viajando, inebriantes, rumo ao Éden. Chegados lá, deram de caras com Adão e Eva; ele dormia regaladamente, todo nu, apenas uma simples parra lhe cobria as partes pudendas; ela tinha na mão uma maçã vermelha, muito vermelha, que trincava com prazer e malícia. Ela olhou para os recém-chegados e, sorrindo, diz-lhes: «sejam bem-vindos ao paraíso

     Rompia a manhã quando ouviu cantar os galos. Logo a seguir o patrão levantou-se. Ela esquecera-se de um pormenor: não lhe pusera no quarto cuecas nem a camisola interior; o homem não ia vestir a mesma roupa da véspera, estava demasiado suja. Levantou-se apressadamente e foi ter com ele:
      
- Senhor Manuel: espere um bocadinho que eu vou buscar-lhe umas cuecas e uma camisola interior.

- Ó mulher, esta roupa ainda me dá para uma semana.

- Não precisa de andar com roupa suja. Espere um pouco.
 

    Tinha dado uma vista de olhos por toda a casa e já descobrira a roupa dele. Levou-lha. Ele estava deitado, à espera dela.

- Queres pôr-me bem cheiroso, depois as raparigas atiram-se a mim!

- Olhe que o senhor ainda rompe bem meias solas! Quem dera a muitas raparigas tê-lo no leito.

- Vou-te confessar uma coisa: já não vejo fêmea há muito tempo. Ando metido nos negócios e nem tempo me sobra para me dedicar a elas! E das rameiras fujo, por causa da sífilis.

- Pois olhe que tem perdido bastante. Os homens nasceram para dormirem com as mulheres, para terem prazer e filhos.

- Isso é verdade, Lina. Eu andei pelo estrangeiro, sempre a trabalhar, a juntar uns cobres, depois meti-me nos negócios, e esqueci-me dessas coisas.

     Ela aproximou-se dele, sorrindo com imensa meiguice, com aquele ar só seu, de velhaca matreira, e meteu a mão direita por entre os lençóis, à procura de qualquer coisa, talvez das cuecas sujas. Ele compreendeu o fito, entusiasmou-se, mandou às urtigas as precauções, pegou-lhe na mão e levou-a directamente ao falo. Não tardou nada que os dois corpos estivessem unidos, amalgamados, num arfar ruidoso, iniciando uma viagem semi-narcótica através do vácuo.