quinta-feira, 29 de junho de 2017


OS NOVOS LUSÍADAS
(tentativa de continuação de «Os Lusíadas» de Camões)
 
Por Joaquim A. Rocha



60

 Por essa altura, um matemático,

Pedro Nunes, assim era chamado,

Investigador, mestre catedrático,

Em Alcácer do Sal (Setúbal) nado,

Com seu espírito calmo, fleumático

Inventa o nónio, mui gabado…

Interessa-lhe também medicina,

E outras ciências que ensina.

 
61
 

Deste reino, foi cosmógrafo-mor,

Sabia lógica e metafísica;

Em tudo, ele era o maior,

Curava males, a terrível tísica.

Conhecia os mil astros de cor,

Estudava a química e física.

Na cidade de Coimbra morreu,

Até hoje ninguém o esqueceu.


62

O rei João gerara nove filhos,

Mas nenhum deles lhe sobreviveu;

Isso provocou guerras e sarilhos,

O neto não era inda corifeu;

Surgiram imensos cadilhos,

Invocou-se a virgem, o santo céu.

Sebastião tinha apenas três anos,

Era inda na idade dos enganos.

63

Regeu em seu nome Dona Catarina,

Viúva do rei Dom João Terceiro,

Que já não era nenhuma menina,

Nem sabia como governar o reino.

Portou-se como uma frágil bonina,

Sem qualquer saber, sem mínimo treino.

E pra que tudo não caísse a pique

Subiu ao poder seu tio Henrique.


64
Neste reinado tomou-se Damão

À velha Índia, cheia de mistérios;

 Rio de Janeiro nasceu da paixão,

Desse povo de honestos e galdérios;

Cresceu como a espiga no verão,

Tornou-se capital do novo império.

De longe Camões trouxe um tesouro,

Mais valioso do que prata ou ouro.

 65

Os Lusíadas, obra monumental,

São apresentados ao jovem rei,

Que os lê como se fora missal;

Ele não sabia, e nem eu sei,

Se a leitura lhe fez bem ou mal,

Se o engrandeceu perante a grei.

Meteram-lhe bichinhos na cabeça,

Louvores que eu duvido que mereça.

66

Foi crescendo assim o jovem monarca,

No meio de santinhos e padrecos,

Lendo Santo Agostinho e Petrarca;

Ouvindo sermões de sacerdotes recos.

Sonhando imprimir a sua marca,

Criando um exército de tarecos.

Ansioso por seus dotes exibir

Cai na batalha de Alcácer-Quibir.

 67

Era inda uma simples criança,

Solteirinho, sem qualquer descendente,

Um pobre seguidor, um Sancho Pança,

Deixando este país dependente.

Da Espanha um Filipe avança,

A fim de substituir o rei ausente.

E pra que se cumpra o seu desejo

Manda as suas tropas prò despejo.

68

Dom Sebastião não é o desejado,

Não voltará jamais da sua cova;

Pelo povo será sempre desprezado,

Pela terrível, monumental sova.

Do seu exemplo, outrora glorificado,

Pouco resta, ou nada sobra.

Descanse em paz onde quer que esteja,

 Pois a sua obra ninguém a inveja. 

segunda-feira, 26 de junho de 2017

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha




FORAIS MELGACENSES

(continuação)

 

 
     Nada fazia prever, quando em 1223 morre Afonso II, subindo então ao trono seu filho Sancho II, que Afonso algum dia viesse a ser rei. Ele próprio não acreditava nessa possibilidade. Por isso, em 1227, quatro anos depois de seu irmão se tornar monarca, parte para França onde casa, em 1245, com a condessa Matilde de Bolonha, senhora de muito prestígio. Matilde, por razões que eu desconheço, não acompanhou seu marido quando este veio assumir o poder em Portugal. Razões de Estado? Razões de coração? Esta nobre senhora faleceu em 1261, já «divorciada» de Afonso III, rei de Portugal e Conde de Bolonha.

     Foi o papa Inocêncio IV, em 1245, a pedido dos prelados e de alguns nobres portugueses, quem nomeou Afonso «defensor do reino de Portugal», enquanto seu irmão fosse vivo (Sancho II seria desterrado para Toledo, onde faleceu no ano de 1248).

     Afonso III casou novamente (encontrando-se ainda viva a sua primeira mulher), com Beatriz, filha de Afonso X, o Sábio, rei de Leão e de Castela, na cidade de Chaves, no ano de 1253. A bolonhesa não lhe tinha dado filhos; a castelhana, porém, deu-lhe sete! Além destes, o pai de D. Dinis ainda conseguiu arranjar mais dez ilegítimos!

     Depois de terminada a guerra civil, provocada por esta estranha sucessão, Afonso III virou-se para a administração do território. Promoveu novas inquirições «que deviam julgar da justiça dos títulos de posse e privilégios, padroados, coutos (…), a fim de evitar apropriações abusivas.» É neste espírito de organização e atualização que surge o novo foral dado a Melgaço no ano de 1258.
 
2.º Foral


     Em nome de Cristo e por sua graça. Seja conhecido de todos, tanto coevos como futuros, que eu, Afonso, por graças de Deus rei de Portugal e Conde de Bolonha, juntamente com a minha esposa e rainha D. Beatriz, filha do ilustre rei de Castela e de Leão, faço carta de foro a vós, povoadores presentes e futuros de Melgaço. Dou-vos e concedo-vos a minha vila de Melgaço para a povoarem para foro. E mando que sejais na dita vila trezentos e cinquenta povoadores. E vós, e todos os vossos sucessores, dar-me-eis, e aos meus sucessores, anualmente, trezentos e cinquenta morabitinos velhos (1), três vezes ao ano, por todos os direitos, foros e coimas qua adiante vão descritas. E haveis de receber na mesma vila o meu rico-homem (2) que tiver essa terra e aí gaste os seus dinheiros, e não vos faça nenhum mal nem força, nem vos tire seja o que for contra a vossa vontade. Eu próprio nomearei alcaide que me preste menagem do meu castelo. E o alcaide em pessoa deve guardá-lo e não vos fazer mal ou força, e não se intrometer nos assuntos da vossa vila e concelho, a não ser para aquilo que o quiserdes chamar.

     E tende a vila de Melgaço com todos os seus limites, divisões novas e antigas, por onde os puderdes melhor encontrar de direito. E em todas as outras coisas, para além do que acima está escrito, dou-vos o foral de Monção, como segue:

     Em primeiro lugar, concedo-vos que não deis por homicídio se não trezentos soldos de coima, e desses dai deles a sétima parte ao paço por mão do juíz. E em qualquer pleito, ou crimes que exijam reparação, não entre o meu meirinho (3), a não ser como juíz do vosso concelho. E a terceira parte do vosso concelho faça fossado (4), e as outras duas partes permaneçam na vossa vila. E daquela terceira parte que deverá fazer o fossado, aquele que não se apresente pague, para o esforço de guerra, cinco soldos de coima. E não façais fossado senão com o vosso senhor, uma só vez por ano, a não ser que seja por vossa vontade. Os clérigos e os peões (5) não façam fossado. E não entrem aí mensageiro nem bens de qualquer homem de Melgaço. E quem, no termo de Melgaço, raptar filha alheia contra sua vontade, pague ao paço trezentos soldos e seja expatriado como se fora homicida. E se alguém de entre vós ferir com premeditação na feira, na igreja, ou no concelho, o seu vizinho, pague sessenta soldos ao concelho, sendo a sétima parte para o paço por mão do juíz. E de qualquer furto, o dono da coisa furtada receba o seu cabedal e das outras oito partes dê ao juíz metade (6). E aquele que fizer uma casa, ou honrar a sua vinha e herdade, e nela residir durante um ano, se depois quiser habitar noutra terra, os seus bens continuarão a pertencer-lhe onde quer que ele habite. E se quiser vendê-los, venda-os pelo foro da vossa vila a quem quiser. E os homens de Melgaço que tiverem de fazer juízo ou ajuntamento com homens de outras terras façam-no nos limites dos seus termos.

     Dou-vos por foro que o cavaleiro (7) de Melgaço seja havido por infanção (8) de todo o meu reino em juízo e em juramento e isso vinque com dois censores (9); e o peão seja havido como cavaleiro vilão de todas as minhas terras em juízo e em juramento e vinque isso com dois censores. E os homens que das suas terras tiverem de sair por homicídio ou rapto de mulher, ou por qualquer outra calúnia (10), exceto se trouxerem a mulher de outrem, no estado de casada, e se se fizerem vassalos de algum homem de Melgaço, sejam livres e defendidos pelo foral de Melgaço. E se um homem de qualquer outra terra vier com inimizade ou com penhora, depois de ter entrado no termo de Melgaço, se o seu inimigo entrar depois dele e lhe tirar o penhor ou lhe fizer algum mal, pague ao senhor que tiver posse de Melgaço quinhentos soldos e duplique o penhor àquele a quem o tiver tirado e repare os agravos que lhe tenha feito. E quem penhorar um homem de Melgaço, e antes não o tiver solicitado, à vossa assembleia, pague ao paço sessenta soldos e duplique a penhora àquele que a tiver sofrido. E homem de outra terra que descavalgar cavaleiro de Melgaço pague sessenta soldos; e homem de Melgaço que descavalgar cavaleiro de outra terra pague cinco soldos. E se homem de outra terra prender homem de Melgaço e o puser na prisão pague trezentos soldos; e se homem de Melgaço prender homem de outra terra pague cinco soldos. E se homem de Melgaço, por qualquer fiança, não for citado durante meio ano, a mesma caduque; e se entretanto morrer, a mulher e os filhos dela fiquem livres. E os homens de Melgaço não paguem pela penhora nem para o senhor da terra, nem para o meirinho, nem sejam penhorados pelo seu vizinho. Nem os cavaleiros de Melgaço, nem as mulheres viúvas, dêem pousada pelo foro de Melgaço, a não ser os peões, por indicação do juíz, até ao terceiro dia. E os homens de vossos termos, ou de outras terras, que se instalem em vossas propriedades, ou em vossos solares, quando vós aí não estiverdes, venham os mesmos por ordem do juíz e dêem fiadores residentes que possam responder perante a lei quando regressarem os legítimos proprietários. E se fizerem calúnia, paguem-na aos seus senhores e a sétima parte ao palácio. E não sirvam senão aos senhores em cujos solares vivem. E as searas e as vinhas do rei tenham igual foro ao que têm as vossas searas e vinhas.                                
     Aquele que matar o seu vizinho e se refugiar em sua casa, quem entrar atrás dele e aí o matar, pague trezentos soldos. E quem uma mulher forçar, e a própria se puser a gritar (não aceitando o ato) se o violador por meio da lei [Lei das XII Tábuas (11)] não se puder salvar, pague trezentos soldos. E quem bater em mulher alheia, pague ao seu marido trinta soldos e a sétima parte ao paço. E o homem de Melgaço que queira dar fiadores por intenção daquilo que o inquieta, e tiver dado dois fiadores, e ele próprio ser o terceiro, se aquele que é o motivo da sua inquietação não quiser aceitar os fiadores, e posteriormente o matar, todo o concelho pague o homicídio aos seus parentes. E o paço do senhor rei e o paço do senhor bispo tenham coima (12). E toda a vila tenha um único foro (13). E o homem de Melgaço que entrar com um fiador, se aquele que desrespeitou não o libertar qual tenha feito a fiança, tal pague. E se tiver para com ele uma atitude de ameaça, despreze-o, e saia ele próprio da fiança. E da suspeita de dez soldos pelo menos, jure com um vizinho apenas; e de dez soldos para cima, jure com dois vizinhos. E o homem de Melgaço que queira ir para outro senhor, para que este o beneficie, a sua mulher e os seus filhos sejam livres e a sua casa e os seus bens desonerados pelo foro de Melgaço.   // continua...
 

sexta-feira, 23 de junho de 2017

GENTES DE MELGAÇO
(microbiografias)
 
Por Joaquim A. Rocha





IGREJAS, José Félix (Geadas). Filho de Perfeita Augusta, ou Perfeita Cândida, Igrejas. Neto materno de Félix Igrejas e de Conceição Costas. Nasceu na Vila (!) a 31/3/1902 (*). // A 13/7/1912 fez exame do 1.º grau com o professor António José de Barros, obtendo a classificação de «ótimo». // A 14/8/1914 fez exame do 2.º grau na escola Conde de Ferreira, ficando aprovado. // Casou na igreja de SMP em 1923 com Esménia de Nazaré da Silva Cintrão, mais conhecida por “Amália” (NM n.º 22), nascida na freguesia de Prado, Melgaço, a 28/2/1901. // Foi o bombeiro voluntário n.º 25 (10/2/1929). // Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 202, de 23/7/1933: «Deu-se nesta vila o envenenamento de diversos indivíduos, que felizmente escaparam às garras da morte devido aos prontos-socorro prestados no hospital da Misericórdia pelo abalizado clínico, Dr. Cândido da Rocha e Sá, que foi incansável na aplicação dos tratamentos necessários para combater os terríveis efeitos do veneno. Na sexta-feira, quase noite, a mulher de José Félix Igrejas, com taberna no Largo Hermenegildo Solheiro, estava a fritar umas sardinhas quando apareceu Lucrécia Picota que lhe pediu para envolver as sardinhas em farinha. A criada, Maria de Lurdes Fernandes, tendo encontrado uma porção de farinha num armário, tratou de envolver as sardinhas que, depois de fritas, foram vendidas a diversos fregueses que se sentiram incomodados. Os donos da casa (…) comeram também, assim como dois filhos menores e a criada, sentindo os mesmos incómodos. De conjectura em conjectura, calculando que os incómodos que sentiram eram devidos às sardinhas terem-se estragado com o calor, ou ainda ao azeite com que foram fritas, só muito tarde, quase meia-noite, é que descobriram que a farinha em que tinham envolvido as sardinhas estava preparada com arsénico para matar os ratos e que o José Félix, por esquecimento, tinha deixado numa prateleira da casa. Recorrendo imediatamente ao Dr. Sá, este distinto clínico fez conduzir todas as pessoas que comeram as sardinhas para o hospital da Misericórdia onde, durante toda a noite, lhes prestou o socorro necessário para os salvar. Os envenenados foram, entre outros: José Félix Igrejas, mulher, dois filhos e criada, Francisco Romão Esteves, Joaquim Rodrigues, José Joaquim Nunes de Castro, e Manuel José Alves e mulher.» // A 1/12/1935, domingo, atropelou com a sua camioneta de carga, indo de Melgaço para o Porto, António de Pinho, de 53 anos de idade, oficial de diligências na comarca de Caminha, que ia montado na sua bicicleta, o qual teve morte imediata; o desastre deu-se na estrada do Camarido, entre Caminha e Moledo, afirmando-se que José Félix não tivera a culpa; contudo, foi detido pelas autoridades locais, exigindo-lhe a fiança de 8.000$00, que ele prestou, sendo logo restituído à liberdade (NM 293, de 8/12/1935). // Era homem de negócios: teve altifalantes e um Café (que mais tarde pertenceu ao filho, Manuel José) e dedicou-se a comprar vários produtos no Porto, que depois vendia aos galegos, sobretudo durante a guerra civil de Espanha (1936-1939). // A 2/1/1939, cerca das duas horas da manhã, verificou-se um incêndio na sua casa, no Bairro do Carvalho, Vila de Melgaço; graças aos vizinhos, que acorreram prontamente, as chamas pouco destruíram. Ainda compareceram no local os bombeiros, mas o fogo já estava praticamente extinto. Não teve grandes prejuízos, pois a casa estava no seguro. // Dois dias depois, a 4/1/1939, quando se dirigia para o Porto na sua caminheta de carga, ao chegar a Barbeita chocou contra outra viatura de carga, pertencente a Joaquim Pereira, que era na altura o condutor. Felizmente não houve quaisquer feridos, apenas danos materiais. // Faleceu a 4/7/1992, com 90 anos de idade. // Pai de José, de Manuel José, de Maria Amália, de Maria da Conceição, de Maria de Lurdes, e de Esménia. /// (*) Aquando do seu casamento com Esménia de Nazaré o funcionário da Conservatória do Registo Civil de Melgaço escreveu que ele nascera na freguesia de São Lázaro, concelho de Braga.        

 

segunda-feira, 19 de junho de 2017

POEMAS DO VENTO
 
Por Joaquim A. Rocha





Um poeta é um criador de reinos

imaginários, sem originalidade.

O poema é a sua casa.

Através das janelas do poema

ele avista o mundo – não o seu!

E o que vê não lhe agrada.

A sua matéria-prima são os

impulsos primários e prima

pela ausência da vontade imposta.

O reino que cria, verdadeira terra

de ninguém, embora povoada,

serve-lhe de abrigo e de desculpa.

O poeta é sempre um ser culpado!

Não o reconhecer – é doloroso.

E bate com as palavras contra as

paredes graníticas do silêncio

absoluto – esmaga-as sem piedade!

Depois chora, ri e pragueja – pieguice!

Não, o mundo não é bem o seu lugar:

o poema… sim.

O poeta tem a noção da sua timidez,

da sua falta de jeito para o quotidiano.

Ele é um fugitivo, nunca um perseguido!

 

 
14/6/1982

sexta-feira, 16 de junho de 2017

 MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS
 
Por Augusto César Esteves




// continuação...

         D. Afonso III deu, efectivamente, a Melgaço foral semelhante a Monção e de presumir é terem-no recebido com agrado os seus habitantes. Estes, passado o entusiasmo de momento, feitas as contas provocadas pelo novo e mais gravoso foro a cobrar pelo fisco anualmente, graças à nova divisão das mesmas terras, arrependeram-se e não estiveram pelos ajustes, porque contas são contas e sempre é preciso pagá-las. Escreveram, por isso, as suas queixas e enviaram-nas ao monarca e este, magnanimamente, avocou as regalias concertadas, anulou o contrato feito e deixou a vigorar em Melgaço o velho foral de seu avô. Ele mesmo conta como os factos se passaram neste singelo documento de 9/2/1261:

«Carta de foro de Melgazo

      In Dei nomine. Alfonsus dei gracia Rex Portugalie vobis populatoribus de Melgatio salutem et gratiam. Scatis quod dictum est mihi que vos eratis gravati cum foro que ego de novo vobis dedi et ego volens vobis facere gratiam et mercedem unde ego una cum uxore meã Regina domna Beatrice illustris Regis Castelle et Legione filia e filia nostra infanta domna Blanca revoco predictum forum que vobis dedi et reduco vos ad illum statum in quo eratis antequam dedisem vobis ipsum forum et mando que quilibet vicinus recuperet et habeat totum suum heredamentum que ante habeat. Et do et concedo vobis illud forum que habuistis apud avo meo Rege domno Alfonso inclite memorie et que confirmavit vobis pater meus rex domnus Alfonsus bone memorie. Qui forum simile est foro de Burgo de Ripa avie. Et volo et mando que vos populetis ipsam villam et teneatis eam populatam inxtam continenciam ipsius fori. Cuius fori et confirmationis patris mei talis est tenor…»     

     Foi neste mesmo dia que o rei bolonhês confirmou o pacto feito antes com D. Sancho I sobre a conversão das rendas, foros e direitos reais em mil soldos leoneses. O mesmo documento o elucida depois de transcrever o foral dado por D. Afonso Henriques e para se ficar conhecendo senão a época, ao menos os termos daquele contrato feito entre os melgacenses e o rei povoador, gostosamente aqui se transcreve aquela confirmação:

     «Ego prenominatus Rex Alfonsus tercius qui vobis populatoribus de Melgatio concedo predictum forum, concedo vobis et ratum habeo illud pactum que voviscum fecit rex domnus Sancius frater meus que tale est videlicet que pro omnibus rendis et foris et directis meis supra dictis que habeo in ipsa villa de Melgatio detis mihi et omnibus successoribus meis quolibet anno mille solidos legionenses ad tercias anni videlicet unam terciam in die omnium sanctorum et aliam terciam in die paschatis et aliam terciam prima die juli et debetis tenere et guardare ipsum meum Castellum de Melgazo per vestras custas per vestras expensas et debetis mihi dare milite bonum et fidelem et naturalem de meo regno et filium de algo qui faciat mihi menagium de ipso Castello de Melgazo. Et si aliquis que moretur in ipso Cauto de Melgazo levaverit vinum in Barca, foras de ipso cauto debet inde mihi dare meum directum. Et nullus riquus homo debet intrare in villam Nec in castellum Nec in cautum de Melgazo contra voluntatem Concilii de Melgazo nisi ego mandavero illum intrare in ipsam villam vel in ipsum castellum vel in ipsum cautum pro addefendendum terram meam. In cuius rei testimonium dedi vobis populatoribus de Melgazo istam meam cartam de mej siglii munimine consignatam. Datum Vimarane viii die februarij Rege mandante. Era M.CC.LX VIIII D. Gonsalvus Garsie alferaz Curie conf. D. Egidius Martini maiordomus Curie conf. D. Martinus Alfonsi tenens Braganciam conf. D. Alfonsus Lupi tenens Sousam. D. Didacus Lupi tenens Lamecum conf. D. Andrea Fernandi tenens Ripam Minij conf. Martinus Egidii tenensTrasseram conf. Domnus Martinus archiepiscopus Bracarensis conf. D. Egeas episcopus Colimbriensis conf. D. Rodericus episcopus Egitanensis conf. D. Matheus episcopus Visensis conf. D. Petrus episcopus Lamecensis conf. D. Martinus episcopus Elborensis conf. D. Vicentius electus portugalensis conf. D. Iohannes de Aveyro (?) ts. D. Menendus Suerij de Merleo (Marelães?) ts. D. Iohanes Petre corrigia ts. Petrus Martinus quondam superindex ts. Petrus Martini petarino ts. Johannes Suerij coelo ts. Fernandus Fernandi cagomino ts. Rodericus Johannes magister scolarum tudensis ts. Johannes Suarij clericus domini regis ts. Johannes Fernandi vice cancellarius ts. Petrus Johannis repositarius maior ts. D. Stephanus Johannis cancellarius Curie conf. Dominicus Petri notarius curie facit      

     Eu não sei se nestes muros haverá pedra que não recorde uma página da História de Melgaço. Aqui está um juntoiro a falar dos tempos de Dom Dinis, dos monarcas, um dos maiores propulsionadores do progresso da nação, das testas coroadas, um dos mais ciosos dos seus direitos. Tão reivindicador dos mesmos foi, que três vezes forjou alçadas só para em Melgaço devassarem as honras novas, pois em cumprimento das suas ordens aqui estiveram em 4/8/1288 D. Pedro Martinho, prior (…) da Costa e companheiros «e que essa inquirição fizessem escrever por mão de Paio Esteves, tabelião de Guimarães, e eles fizeram essa inquirição assim como lhes foi mandado e entregaram-na, e minha Corte viu essa inquirição e examinou-a e houve Conselho sobre ela e julgou-a e o juízo que aí deu também por mim como por eles é escrito nos róis que são em a minha Chancelaria e aqueles que daí quiserem cartas de juízo venham por elas e minha Corte far-lhas-á dar… salvo os julgados que são estes: julgado de Melgaço, de Valadares, de Monção, da Pena da Rainha…»  

     Em 1301 cá veio João César:

     «Item, eu, João César, cheguei a Melgaço e lendo o rol da inquirição d’el-rei perante Gonçalo Anes, de Paderne, e Gonçalo Anes, de São Paio, juízes dessa Vila, e perante Pero Eanes e Rodrigo Anes, e Martim Peres, tabeliões dessa Vila, e perante muitos outros homens-bons… achei que em Doma que o mosteiro de Fiães sacaram três homens dos casais seus que faziam foro a el-rei e fizeram aí colheitas de grão da era de MCCXXX anos até aqui…»

     E em 1307:

     «e, no mês de Outubro quando eu, Aparício Gonçalves, vim por mandado de el-rei a além Doiro e aquém Doiro para inquirir as honras feitas novamente… primeiramente comecei em Melgaço e, visto o rol d’el-rei, da inquirição que fez o prior da Costa…», tudo achou bem, salvo Bergoti e «que todo Doma e a Granja que aí fez o mosteiro de Fiães, e todo Rouças eram devassos, salvo a quinta do forno telheiro…»

 // continua...

quarta-feira, 14 de junho de 2017

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha
 
 
 
 
Escritores Melgacenses

Dr. Ricardo Manuel Ferreira Gonçalves. Nasceu no lugar de Ferreiros, freguesia de Paderne, a 13/9/1957. Tirou o curso de filosofia, deu aulas no ensino secundário durante algum tempo, depois aderiu ao Partido Socialista e foi deputado na Assembleia da República até 2011, salvo erro. Na sua juventude escreveu um livro, ao qual deu o título de «Carneiros em Transumância – emigrantes clandestinos», editado pela Perspectivas & Realidades, com o patrocínio da Associação Cultural Inês Negra. Aborda o problema do “salto” para o estrangeiro, sobretudo para França, a miséria no mundo rural, etc. Embora o tema seja socialmente interessante, peca pela sua qualidade textual. Espera-se que numa segunda edição o texto seja mais cuidado, e se mude de título e de desenho, pois a palavra “carneiros”, em lugar de homens, ou pessoas, é demasiado forte, até agressiva, apesar de retratar uma certa realidade daquela época, anos sessenta do século XX. Manuel Igrejas, emigrante no Brasil, leu o livro e comentou: «O tema é aliciante, bem desenvolvido, (…) em narração envolvente e linguagem agradável e primorosa com termos das nossas aldeias… É realista, mas exagerado, muito pessoal no conceito ideológico. Esta intenção do autor… é desculpável, uma vez que na apresentação da sua pessoa se confessa militante socialista. Todavia, o rancor ao anterior regime … diminui um pouco o valor literário. Ele poderia contar a história sem marcar os conceitos políticos, apenas dá-los a entender subjectivamente. Como expõe abertamente o seu idealismo, dá-me o direito de dizer que não concordo totalmente com esses conceitos. No entanto, àparte o exposto, o livro é bom…. Um grande mérito, além do valor intrínseco, é provocar na consciência dos leitores, pessoas daquele tempo, uma análise, profunda meditação do sacrificado modus vivendi daquela época. Nalguns trechos tive de reler várias vezes para apreender o sentido devido a pontuação confusa. Isso será motivo para uma apurada revisão na próxima edição. O livro é interessantíssimo com passagens de bom humor subtil e inteligente e a segunda parte de terrível dramaticidade. Recomendo a sua leitura a toda a gente, especialmente aos melgacenses. Aqueles emigrantes que deram o “salto” nos anos 60 e 70 vão-se achar retratados. O livro focaliza muitas verdades, algumas bem terríveis que não deveriam ser ditas, porém, nem sempre devidas às circunstâncias a que se refere. O autor, na ânsia de expor seu ponto de vista ideológico, atribue todos os males ao regime a que era avesso. O livro foi escrito há onze anos e neste lapso de tempo muitas das assertivas assacadas contra o regime de então estão sendo vistas doutra maneira. Se aos 24 anos o Ricardo foi capaz de escrever uma obra destas, muito há a esperar de sua inteligência e amadurecimento...» (VM 972, de 15/10/1992).           

domingo, 11 de junho de 2017

LEMBRANÇAS AMARGAS
(romance)
 
Por Joaquim A. Rocha





XV

Em busca do pai perdi o meu rasto

 
     Mais uma vez eu e o meu irmão travávamos uma conversa animada e descontraída; recordávamos tempos passados, revivíamos os momentos mais marcantes da nossa infância. Se puderem venham ouvir esse interessante diálogo:
 

- Então o nosso pai foi para as bandas da Galiza e nunca mais nos veio ver?!

- Isso é o que a mamã diz: eu, concretamente não sei para onde raio ele foi. Quanto a visitar-nos, pode ser que tenha ido alguma vez a Cendre, que nos tenha visto de longe, que eu me lembre de ele ter vindo ter connosco isso não, eu era tão pequenino quando ele se foi embora que se o visse na rua não o reconhecia, provavelmente nunca mais se lembrou de nós, esqueceu-se que nós existíamos!

- Achas que ele tem mais filhos?

- A estrangeira era uma mulher nova, ele também, o mais certo é terem geração. Se a tiverem, se existir algum nosso irmão, eles nem sequer sabem da nossa existência, não lhes devem ter contado nada, para eles nós representamos apenas um episódio sem importância, um grão de areia no deserto, uma gota de água no imenso oceano, nem isso!

- Gostava de o conhecer, e aos irmãos de lá, não gostavas de falar com eles, dizer-lhes que somos filhos do mesmo pai, que podemos ser amigos?

- Eu não, não sou lírico como tu, a mim não me dizem nada, não os conheço, nem sequer sei se nasceram, o que é que ganhava com isso, o mais certo era virem-me pedir ajuda, podem ser uns pelintras, uns tesos, que se desenrasquem, eu também nunca lhes pedi nada, sabes como tenho mourejado, catorze e mais horas por dia, não venhas com essa, qual é o teu interesse em conhecê-los, se calhar davam-te alguma coisa, nem sonhes com isso, ninguém dá nada, o tipo se quisesse já nos tinha contactado, o malandro fez de conta que não foi nada com ele; andou metido com a tua mãe, fez-lhe dois fedelhos, e pôs-se a andar nas calmas, pisgou-se; também, com a idade dela, o que é que a tola esperava, casar?! Só se ele fosse parvo, um rapaz daquela idade ia ligar-se para sempre a uma mulher de trinta e tal anos de idade e mãe de vários filhos, só se fosse estúpido, burrinho de todo, eu teria feito o mesmo, quanto mais longe dela melhor.

- Não me digas que terias coragem, fígados, para deixar uma mulher com duas crianças, uma de meses e outra de três anos de idade, não acredito que fosses capaz disso, não acredito, mesmo que afirmes o contrário.     

- Bem, não sei, mas o mais certo era não me meter com ela, metia-me com uma da minha idade, ou mais nova, ao menos casava e pronto, não ficava com remorsos, meus queridos anjos, eram do meu sangue, até parece que não tem coração, deixarem dois putos tão pequenos, inocentes, que culpa têm as crianças dos erros, das fraquezas dos pais?

- Ela deveria, como mais velha, ter tido mais juízo, pelo menos não emprenhar, mas se isso tivesse acontecido não estaríamos nós aqui, e olha que eu gosto de viver, apesar de não ter pai e ter uma mãe como a nossa.

- Tivemos azar, lá isso, tivemos. Há gente que nasce num bercinho de ouro, nós nascemos na palha, na pocilga, na imundície, na pobreza total, absoluta, ninguém nasceu mais pobre do que nós, sem nada, nem ninguém, pigmeus do mundo, crescemos sozinhos, ao deus dará, aos empurrões da fortuna, mas olha que não estamos pior do que alguns que nasceram em ricas camas, cheios de tudo, bom conforto, boa comida, roupa à fartança, não estamos, não, mas graças ao nosso esforço, não nos podemos queixar muito, outros estão bem pior, e olha que podíamos ter saído bêbados, ladrões, do piorio que há, mas não, felizmente saímos honestos, trabalhadores, todos nos respeitam e admiram, e alguns até inveja nos terão!

- Parece que a divina providência nos amparou, nos quis compensar de toda aquela miséria, daqueles anos de fome, de frio, de doenças, de falta de carinho, olha que a falta de carinho foi o que mais me custou, uns braços de pai, de avós, de uma mãe carinhosa e sorridente, mas não, nem avós, nem pai, com uma mãe a cheirar a sardinhas e a vinho entornado, até parece que foi castigo de Deus por algum mal que nós tenhamos feito antes de nascer, olha que eu não me lembro de ter feito mal fosse a quem fosse.

- Nós não fomos os únicos desgraçados, infelizmente houve muitos outros, alguns até foram abandonados pelos progenitores, nem sequer sabem quem são, eu até preferia ser um desses, ao menos não sabia quem eram, teria a ilusão de pensar que eram pessoas fidalgas, ricas, bem instaladas na vida, mas que não quiseram assumir o escândalo, uma aventura de jovens.

- O nosso avô Gaspar foi exposto, coitado, julgo que nunca soube quem foram seus pais, é muito triste, eu prefiro saber, não tenho culpa que os meus pais sejam quem são, não escolhi nascer deles, mas prefiro saber, se calhar até o teu pai não é o mesmo que o meu, eu gostava que fosse, seríamos irmãos inteiros, mas ele disse que não tinha a certeza, provavelmente a tua mãe andava com outro, com a bebida, não sei.

- O avô, coitado, ficou viúvo tinha eu cinco anos de idade, mal me lembro dele, morreu passado dois anos da morte da avó, em 1949, os desgostos mataram-no, ainda não era muito velho, só tinha setenta e dois anos de idade, a segunda guerra mundial deu cabo dos países, tudo racionado, muita miséria, carência de tudo, até havia falta de açúcar para fabricar os rebuçados e roscas.

- Quando faleceu a avó tinha eu três aninhos de idade, não me recordo nada dela, a mamã diz que ela sofreu muito, coitada, a tratar dos filhos, a criá-los, para depois os ver morrer, caíram como tordos, um a um, somente dois lhe sobreviveram, olha que custa; a vida para os pobres é sempre difícil. E para cúmulo da desgraça, as doenças, as mortes, o sofrimento! Os ricos gozam a vida, têm tudo, as doenças não os matam, têm bons médicos, podem comprar os medicamentos, vão para os melhores hospitais, até depois da morte são diferentes de nós: acompanhados aos cemitérios pelas irmandades, bombeiros, bons jazigos de família, missas de corpo presente, responsos; nós somos apenas acompanhados pelos humildes e a seguir enterrados em campa rasa, e ao fim de cinco anos atiram com outro corpo para cima dos nossos ossos e mais ninguém se lembrará da nossa passagem por este vale de lágrimas. Outro dia o senhor padre Alberto recusou-se acompanhar o funeral do marido da senhora Albina, alegando que ele não ia à missa, que era maçónico e ateu – eu nem sei bem o que isso é!

- E depois dizem que são representantes de Deus na terra! O Senhor com certeza não teria procedido dessa forma, as pessoas não são obrigadas a ir à missa; se o defunto pertencesse a essas famílias abastadas certamente ele não teria agido assim.

- Eu não gostava de ser milionário, isso não, mas também não queria ser um pobretana, estou cansado de o ser, contentava-me em ser remediado, não me importava de ser padre, têm uma vida boa, não pagam renda de casa, recebem a côngrua, alguns ainda são professores no Colégio, e agora já não ia para o exército, mas mesmo que eu quisesse não podia sê-lo.

- Não podias?!

- Somente os filhos nascidos no casamento católico são admitidos no Seminário.

- Desconhecia isso. Pulhas! Cada dia gosto menos deles. Que culpa têm as crianças de nascerem fora do matrimónio? Até Jesus nasceu! O pai dele não era São José, são os próprios padres a afirmá-lo, mas sim Deus, ou Jeová, como lhe chamam no oriente.

- Os padres não são os culpados, não foram eles que fizeram essa absurda lei. Julgo que foram os cardeais, ou os bispos, a pedido do Papa, talvez para proteger a Igreja Católica dos malnascidos. Por outro lado, o que disseste acerca de Jesus, atenção, isso é diferente: Deus é Pai e Senhor de toda a Humanidade e de todas as criaturas que existem e que porventura venham a existir no universo, não se pode confundir a divindade, o Ser Supremo, com um humilde ser humano. Jesus veio ao nosso planeta enviado pelo seu pai para nos salvar, para nos livrar da tentação. Escolheu Maria e o seu lar porque achou que aí Jesus teria as condições ideais para crescer em harmonia e virtude. Não confundas as coisas. Nós somos apenas criaturas de Deus e seremos sempre aquilo que ele quiser que nós sejamos.

- A padralhada tem-te doutrinado bem!

- Vós na cidade tornais-vos blasfemos, incréus!