terça-feira, 18 de julho de 2017

A ADVERSIDADE POR MADRASTA
 
Romance de José Alfredo Cerdeira




// continuação...

     Num lugar abrigado entre dois montes, ao fundo do qual corria um regato bordejado por algumas leiras cavadas em socalcos até onde a montanha o permitia, viviam uma mulher dos seus quarenta anos, um rapaz dos seus quinze e uma moçoila que rondaria as suas dez primaveras, se bem que a estação das flores se escusasse a aquecer aquelas paragens com os seus dias mornos e a perfumar o meio ambiente com o aroma das plantas floridas. Sucedia que nenhuma das crianças era filha da referida mulher. O rapaz era seu sobrinho e a rapariga, sua afilhada. Desde tenra idade, todavia, se encontravam sob sua tutela, por falecimento dos pais de ambos e não terem família que deles tomasse conta. Embora a casa onde moravam, os campos que amanhavam e o rebanho serem pertença do sobrinho, por herança de seus pais, ele ignorava tal facto, atendendo a que sua tia sempre se intitulara dona e senhora de todos esses bens. Habituara-se a administrar todos os pertences do sobrinho, desde que sua única irmã se finara, visto que o cunhado há muito falecera, não desejando perder essas prerrogativas, mesmo após a maioridade do rapaz. Os usos da terra favoreciam as suas pretensões, pois nem inventário houvera, aquando da morte dos progenitores do moço. Existindo tio ou tia tomava o lugar dos pais e tudo corria dentro da normalidade, obedecendo os rebentos do casal finado ao familiar, como se de seus próprios pais se tratasse.

        Rosa dos Carvalhos, assim se denominava a mulher, apelido pouco usual na zona, onde os mais vulgares eram os Esteves, os Domingues, os Rodrigues e os Afonso, nutria forte aversão contra o sobrinho, devido a, nos seus tempos de juventude, ter namorado com o pai do rapaz e, na altura em que o casamento estava apalavrado, ele a deixara, trocando-a pela irmã. Do ultraje jurou vingança e, decorridos todos aqueles anos, mantinha-se fiel ao seu juramento. Como ambos os protagonistas da sua desdita tinham entregue a alma ao Criador, descarregava todo o fel que lhe inundava a alma sobre o fruto daquele enlace que tamanhos padecimentos lhe acarretara. Com quarenta e tantos anos, para cúmulo assoberbados de trabalhos, de privações de toda a ordem, de amarguras sem conta, que haviam feito dela uma velha precoce, não alimentava ilusões de vir a ser feliz e, muito menos, arranjar marido. Naqueles tempos, mulher que fosse repudiada, jamais alguém olharia para ela. Para uma aldeã, vivendo em lugares recônditos, onde os usos e costumes se mantinham intactos desde há séculos, o casamento era o alvo a atingir, dele dependendo o seu futuro. Enquanto novas, as raparigas lançavam o olho ao rapaz que mais lhe enchesse a vaidade, havendo, já, as mais práticas e sabidas a escolherem aquele que melhores condições de vida lhe poderia proporcionar. À medida que os anos iam passando, tornavam-se menos exigentes, servindo-lhes aqueles que possuíssem umas leiras e umas cabeças de gado. Após os vinte e cinco, agarravam-se a qualquer um, como derradeira tábua de salvação, ao darem-se conta que a frescura dos verdes anos se esvaecia. Na eventualidade de nem essa tábua de salvação surgir, invejavam as que lograram alcançar a felicidade, as que arranjaram amparo para a velhice, as que arrastavam pesada cruz. Em seu entendimento, por se verem enjeitadas, todas usufruíam melhor sorte do que elas. Naturalmente que semelhante mentalidade tende a desaparecer com o decorrer dos anos e o evoluir dos tempos. A juventude já contacta com outras pessoas, já estuda, já se apercebe da transformação do modo de vida. Os pais emigrados mandaram seus filhos estudar, ambicionando tirá-los dos trabalhos árduos que eles padeceram.

        Nas longas noites de invernia, quando a nortada cortante silvava, afigurando-se levar tudo de escantilhão, amontoando a neve de encontro às portas, Rosa dos Carvalhos, embrulhada num xaile coçado, acocorada à lareira, sonhava com a ventura que usufruiria, acaso tivesse casado com o homem que amara apaixonadamente e a trocara por sua irmã, sem uma explicação, sem uma palavra, abandonando-a simplesmente, como peça usada. Ao meditar sobre essa hipotética felicidade que lhe escapara por entre os dedos, mais acirrava o ciúme enraizado no íntimo, ao longo daqueles anos e, consequentemente, mais detestava o fruto daquela união que a ferira profundamente. Com efeito, o ciúme recalcado poderá levar uma pessoa a desfechos imprevisíveis, nomeadamente se rebitado numa alma deficientemente formada. Em tais circunstâncias, induzirá a actos de consequências assustadoras. Dava-se precisamente o caso da referida mulher não possuir uma formação moral minimamente exigida a uma pessoa de bem. O nível cultural dela era nulo, contactos com o mundo jamais mantivera, vendo-se circunscrita ao meio onde viera ao mundo. Para cúmulo, os padecimentos, a solidão, haviam cavado profundo abismo na sua alma. Nunca frequentara a escola por, na altura, ser considerada desnecessária e a distância ser quase intransponível. A sua vida religiosa resumia-se a umas quantas orações ensinadas por sua defunta mãe, ainda em criança. Em contrapartida, acolhia todas as superstições que campeavam na região, transmitidas de pais para filhos, ao longo das gerações. Nas aldeias isoladas, os padres exercem enorme influência sobre o povo, cabendo-lhes, portanto, moldar os espíritos mal formados, rebeldes e irascíveis. Desafortunadamente, na grande maioria dessas aldeias, o pároco não se dava ao incómodo de moldar o carácter, de aconselhar os paroquianos, de os guiar, procurando antes incutir no seu espírito a imagem de um Deus implacável que, pela mínima falta, atira uma alma para o fogo eterno, sem remissão. Não será, eventualmente, a maneira mais ajustada de conduzir o rebanho que lhe foi confiado. Pela vida fora, as pessoas descobrem que foram ludibriadas, especialmente aquelas que se aventuram pelo mundo fora e então o juízo que farão de quem lhes incutiu tais preconceitos não será muito abonador. Insinuar no espírito de uma criança determinada dose de medo sobre a justiça Divina auxiliará a evitar umas quantas travessuras, pelas quais, aliás, não virá o mal ao mundo. Desde que a dose seja administrada adequadamente, ainda será de aceitar. Agora, por tudo e por nada ameaçar com a ira de Deus, penso tratar-se de erro crasso. Muitos dos sacerdotes que exercem o seu múnus nas aldeias mais recônditas possuem avançada idade, vivem isolados, não acompanhando, naturalmente, a evolução dos tempos, estagnando no desenvolvimento e nas ideias, arreigando-se a costumes que a própria igreja ultrapassou, há muito. A hierarquia abandona esses seus membros, como coisa inútil, acarinhando os mais novos que, por seu turno, recusam essas freguesias perdidas nos confins do país.

 // continua...

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