sábado, 9 de dezembro de 2017

LINA - FILHA DE PÃ
(romance)

                                                                                             Por Joaquim A. Rocha



desenho de Rui Nunes
 
4.º capítulo (continuação)

     O relógio do tempo inexoravelmente foi marcando os segundos, os minutos... O juiz andava radiante. A sua namorada morrera, como fora previsto, ficara completamente livre. Tinha agora a amante jovenzinha, satisfazia-lhe todos os desejos, todos os caprichos, era a sua escrava, só esperava que não engravidasse, aí é que as coisas fiariam mais fino. Um dia, à hora do almoço, a Lina dirige-se ao patrão/amante e diz-lhe:

 - Meu amor, este mês não me veio o período, se calhar estou prenha.

- Santo Deus, isso não é nada bom. Estamos perante um mau agouro. Espera mais algum tempo, pode ser uma falha natural, a gente tem abusado um pouco nas relações, é melhor abstermo-nos durante uns dias.

- Eu adorava ter um filho seu. Com um pai assim, tão perfeito, tão inteligente, até dá gosto ter uma criança.

- Não vinha na melhor altura. Faço votos para que não estejas grávida. Se estiveres, tens de arranjar alguém que te faça o aborto. Eu dou-te o dinheiro.

     Ela olhou para o amante e começou a chorar. Lavada em lágrimas, diz-lhe com convicção:

- Não quero fazer nenhum aborto. O bebé há-de nascer. Nem que eu tenha de fugir para bem longe, para a serra, ou mesmo para o estrangeiro.

     Ele ficou furioso com essas palavras. Os seus olhos chisparam de raiva, tornando medonha a sua fisionomia.

- Tu estás doida, ou quê? Achas que eu permitiria que tivesses uma criança minha? Nunca! Ouviste? Nunca!

     Ela chorou copiosamente. Abraçou-se aos joelhos do seu senhor, pedindo-lhe que deixasse vir ao mundo, o fruto daquele gigantesco amor. Ela ficaria com a menina ou menino, não diria a ninguém que era dele.

     Ele ficou pensativo. Ela acabara de lhe dar a chave da solução, sem correr quaisquer riscos.

- Está bem, se estiveres grávida não abortarás. Confirma a gravidez.

     Passou mais um mês e nada de menstruação. Estava de facto grávida. Uma noite, ao jantar, ela diz-lhe, com algum receio:

- Não há dúvida nenhuma: estou de esperanças.

     Ele já tinha pensado em tudo. O seu plano não falharia.

- Tudo bem. A partir de agora vais cumprir escrupulosamente tudo aquilo que eu te ordenar para fazer. Em primeiro lugar aceitas o namoro daquele pelém que por aqui passa todos os dias para te ver.

     Ela rapidamente faz a lista dos seus pretendentes e diz:

- Mas esse é o mais feio de todos!

- O mais feio e o mais tolo. Trazes o palerma aqui para a garagem, tens relações com ele, e daqui a um mês dizes ao sonsinho que estás grávida. Como és menor, ele terá de casar contigo. Disso trato eu.

     Ela ficou pensativa. Ter de ir para a cama com aquele idiota, beijá-lo, suportar aquele cheiro da brilhantina… Se ainda fosse o Tónio, uma bonita figura de rapaz… Mas por aquela vida que ainda havia de nascer valia a pena sacrificar-se. O Senhor Doutor nunca admitiria ser pai da criança. E quem era ela para o enfrentar? A força estava do seu lado, nada havia a fazer. Podia ser que ele a conservasse como criada, que continuasse a ser seu amásio, aquele parvo não se aperceberia de nada, e mesmo que se apercebesse, que importava? Depois de uma certa hesitação, decidiu-se:     

- Está bem, eu aceito. Amanhã já o procuro, ele está doidinho por mim, não vai ser difícil trazê-lo para a garagem.

- Menina bonita, assim é que é falar.

     Tirara-lhe um peso enorme da consciência. Dali a uns meses punha-se a andar, nem sequer a avisava. Que ficasse ela, o pimpolho, o choninhas, toda aquela gente analfabeta e rural. Ele era um homem da cidade, um cavalheiro, pertencia a outro patamar social. Por outro lado, tinha imensas ambições: pretendia fazer um doutoramento, chegar ao Supremo Tribunal de Justiça, ter um nome prestigiado na ciência do Direito. Fora bom tê-la na cama, ensinara-lhe tudo que sabia sobre a arte do prazer, ela até lhe devia estar agradecida por esses ensinamentos. Ficara quase mestra na ciência do amor libertino.         

     No dia seguinte, tal como ficara planeado, a Lina foi fazer algumas compras às lojas do Terreiro e no regresso veio pela Rua Direita, pelo sítio onde costumava estar o Mário, o tal que estava perdido de amores por ela. Ele dirigiu-lhe a palavra, sabendo de antemão que não obteria qualquer resposta.

- Bom dia, Lina. Hoje estás muito bonita. Cada dia que passa gosto mais de ti.

     Olhava-a com ternura, com aqueles olhos quase saídos das órbitas, cabelo super penteado, os pêlos da face a começarem a aparecer.

- Tens de cortar essas cerdas da cara – observa ela, a brincar, a fim de iniciar conversa.

     Ele arregalou os olhos, não contava que ela lhe falasse. O que teria acontecido? Um milagre?

- Pois é, tenho de comprar lâminas; a barba começa a dar sinais de vida.  

- E podes deixar crescer o bigode, é capaz de assentar bem no teu rosto.

- Achas? Nesta carinha tão magra, esquelética!

- Tu até não és feio, precisas é de engordar um bocadinho.

     Começa a aparentar um certo nervosismo, olha-o nos olhos e diz-lhe:

- Logo à noite queres aparecer? O Senhor Doutor Juiz deita-se cedo, vai sempre, depois do jantar, ler um livro, e assim podemos conversar um pouco.

- E o cão? Olha que não é para brincadeiras!

- Eu sei, mas já me conhece bem; pessoa que esteja comigo ele não ladra.

- Então fica combinado: estarei no portão por volta das dez.  

     Despediram-se com um olhar meigo. Ele, logo que se afastou, deu pulos de contente. Nem sequer acreditava no que lhe estava a acontecer – parecia até um milagre. Namorar com a Lina era um sonho que já durava havia algum tempo, mas pensava que jamais se transformaria em realidade. Por ela tudo faria – até arranjar trabalho! Tinha de a merecer, não podia ser um zé-ninguém, estar a viver à custa dos irmãos. Os seus pais já tinham falecido, ficara órfão aos seis anos. Dirigiu-se a casa e, logo que entra, a irmã acusa-o:

- Então! O “fidalgo” ainda não arranjou emprego? Tem quem o sustente, não é? A boa vida é melhor do que o trabalho, pois claro.

     Correram-lhe duas lágrimas pela face. Todos os dias tinha de ouvir um sermão dos manos, mas ele não tinha culpa de nada. Não queria andar nas obras, trabalho duro e mal remunerado, mas também não podia arranjar emprego público, pois só conseguira fazer a terceira classe. Ainda tentara aprender o ofício de sapateiro, mas nada lhe pagavam, era de graça, e muito lhe exigiam. Aqueles patrões sempre zangados, autoritários, gostavam imenso de mandar, dar ordens a torto e a direito, mas não entregavam um tostão em troca. Ainda lhe diziam que devia estar agradecido, pois estavam a ensinar-lhe um ofício. Mas o que é que lhe ensinavam? A endireitar as tachas, a engraxar uns sapatos, a coser uns chanatos, a consertar umas botas cheias de porcaria, com cheiros nauseabundos, insuportáveis! Todo o serviço interessante e limpo fazia-o o mestre. Virou-se para a irmã e informou-a, em modos de pergunta:

- Sabes que os dois filhos mais velhos da senhora Teresa vão para o Brasil?

- Onde teriam arranjado o dinheiro para o barco? – perguntou ela.

- Parece que foi um tio que lhes mandou a carta de chamada e o dinheiro para as passagens. Quem me dera também ir.

- Tu?! Nós não temos parentes ricos no Brasil. Só se fosses a pé! Por outro lado, com o teu apetite pelo trabalho, corriam logo contigo. Ainda te levavam para a selva, para junto dos índios. Mas nem esses te queriam – só tens ossos! 

- Tu brincas, mas eu, se me apanho lá, até conseguia enriquecer. Juro-te! Não vês o senhor Chico da Calçada, veio rico de lá; já comprou uma linda vivenda e uma quinta. E o que era dantes? Um simples agricultor, os pais eram caseiros em Galvão de Riba.

- Mas há quem diga que trabalhou como um escravo, anos a fio. Tu és fidalgo, e calaceiro, não gostas de vergar a espinha. Também, com esse corpo de raquítico, logo quebravas as molas!

- Isso é o que tu dizes, eu sou forte, ainda to hei-de provar.

- Está bem, está bem, léria não te falta, mas isso não enche a barriga a ninguém. Olha, vai mas é à horta apanhar umas couves para o caldo verde. E traz também umas cebolas e tomate. E não demores.

     O Mário partiu a correr, o tempo caminhava velozmente. Por volta das dez tinha de estar no portão do Senhor Juiz, as namoradas não gostam de esperar. A horta ficava ali a dois passos. Colheu tudo o que a irmã lhe pedira e voltou para casa. Depois de comer uma boa tigela de caldo, com um bocado de toucinho, broa e chouriço lá dentro, saiu apressadamente. Desceu as escadas das muralhas antigas, foi pela avenida, ainda em construção, olhou para o portão, mas a moça ainda lá não estava. Via-se luz na cozinha. Devia estar a arrumar a louça. Logo a seguir a luz sumiu-se. Um vulto desceu as escadas da casa, falou com o cão, com certeza prevenindo-o da chegada de alguém estranho, e logo a seguir dirigiu-se para o exterior. O apaixonado desceu os cinco ou seis degraus que separavam a avenida do portão, e espera que ela o abra. Havia um luar quase apagado, sem brilho, a lua não estava nas suas noites. Ela abriu o metálico portão, o qual rangeu, lamuriento, e logo o viu:

- Ainda bem que vieste. O Senhor Doutor já se deitou. Agora só sai do quarto de manhã. Estamos à vontade.

- Tu sabes que eu gosto de ti há imenso tempo, mas sempre me rejeitaste, eu até já perdera a esperança de um dia vires a ser minha.

- Eu gosto muito de ti, mas como sou nova não estava interessada em namorar, foi só por isso.

- Ainda bem que mudaste de opinião, eu ia ficando doido por tua causa.

- O melhor é entrares; aqui pode alguém ver-nos, e depois já sabes, é um falatório dos diabos. O Senhor Doutor Juiz corria logo comigo. // (continua...)

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